Por Amanda Garcia Ludwig, Lucas Renan Domingos, Jéssica Rosso, Rafaela Custódio, Thiago Hockmüller, Samuel Borges, Patrick Stüpp
Em 25/03/2024 às 01:50Nesta semana, completam-se 20 anos que o Sul de Santa Catarina e o Litoral Norte do Rio Grande do Sul sentiram de perto a fúria do primeiro furacão a atingir a costa do Atlântico Sul. Batizado de Catarina, o fenômeno alcançou os estados brasileiros na noite do dia 27 de março de 2004 e se estendeu até a madrugada do dia 28, produzindo rajadas de vento que ultrapassaram os 180 quilômetros por hora (km/h). Foram cerca de 8 horas entre a chegada no continente e a dissipação. Tempo suficiente para provocar 11 mortes e mais de R$ 200 milhões de prejuízo em Santa Catarina. Estima-se que 36% das edificações existentes na região Sul catarinense foram danificadas e cerca de 2 mil completamente destruídas.
Para se ter uma ideia da complexidade do cenário vivido no final de março de 2004, estima-se que a abrangência do furacão cobriu uma área onde viviam 400 mil pessoas somente no lado catarinense. Ao todo, 21 municípios barriga-verde foram severamente afetados, 14 deles decretaram situação de calamidade pública e sete situação de emergência. No Rio Grande do Sul, as cidades mais atingidas foram Torres, Dom Pedro de Alcântara, Arroio do Sal e Três Cachoeiras.
Dados compilados pela Defesa Civil por meio de Relatórios de Avaliação de Danos (Avadans) indicam que o furacão deixou em Santa Catarina 24.181 pessoas desalojadas, 2.262 desabrigadas e 435 feridas - a grande maioria dos acidentes aconteceram após a dissipação do vento e durante o trabalho de manutenção da infraestrutura danificada.
O Catarina também produziu prejuízo na agricultura, conforme relatórios da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri/SC). Na cultura do milho, foram 7.538 hectares atingidos, com 90% de perda. No arroz irrigado, os ventos atingiram 31.125 hectares, gerando 18,3% de perda. O impacto também foi significativo na cultura da banana, com 70% de perda dos 5.705 hectares atingidos. Ainda houve prejuízo nas culturas do feijão, maracujá, mandioca e moranga.
Litoral Sul foi severamente afetado na passagem do furacão em 2004. (arte: Frederico Rudorff)
Na fauna, um estudo elaborado por pesquisadores do Grupo de Estudos de Desastres Naturais (GEDN) da Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) indica um grande número de aves mortas durante a passagem do Catarina. E que aves costeiras foram parar nos vales e encostas da Serra Geral. Já pesquisadores da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) concluíram que 5% das árvores do Parque Nacional Aparados da Serra, localizado entre o Extremo Sul Catarinense e o Nordeste do Rio Grande do Sul, foram derrubadas com a força do vento. Surpreendentemente isto gerou efeito positivo sobre a flora com o surgimento de novas plantas e a regeneração do ecossistema.
Mas o impacto do Furacão Catarina transcende a área econômica. Foi além dos estragos na infraestrutura e na natureza. O terror vivido naquela noite/madrugada de março, quando a força do vento fez com que o mar fluísse em direção ao Sul como se fosse um rio, causou danos emocionais incuráveis. Duas décadas depois, ainda há medo de que um novo furacão surja no horizonte e ganhe o continente como rota. O Catarina, ciclone tropical classificado na categoria 2 da escala Saffir-Simpson - usada para dar a estimativa do potencial risco de danos e inundações esperados durante a passagem de um furacão -, soprou ventos com barulho semelhante à turbina de um avião. Tamanha força foi suficiente para arremessar uma casa de madeira situada em Torres para além do rio Mampituba, caindo em Passo de Torres, no lado catarinense.
Começa aqui a matéria especial produzida pela equipe de reportagem do Portal Engeplus. Abaixo, explicaremos em detalhes o que provocou a formação deste fenômeno único e que gerou discussão no meio científico sobre a sua real classificação, o efeito dele para os catarinenses e histórias que resistem na lembrança 20 anos depois.
O primeiro e o único
Para entender melhor a raridade deste fenômeno, é importante saber que um furacão é um ciclone tropical. Ainda existem os ciclones subtropicais e os extratropicais. As tempestades mais comuns no Atlântico Sul são as extratropicais. Catarinenses e gaúchos estão habituados com notas meteorológicas informando a atuação delas próximo à costa.
Todos os três tipos de ciclones possuem potencial de destruição. No caso do extratropical, ele pode atingir ventos com velocidades semelhantes a furacões de categoria 1. Outro detalhe é que enquanto o furacão tem velocidades mais altas concentradas em torno do olho, o ciclone extratropical tem forma mais ‘espiralada’ e não possui olho definido.
“Então o furacão a gente colocaria como um sistema muito mais concentrado em uma área menor e o ciclone extratropical pode realmente atingir uma abrangência bem maior”, explica o coordenador de Monitoramento e Alerta da Secretaria de Estado da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina, Frederico Rudorff.
O Catarina não só foi o primeiro furacão a atingir o território brasileiro como é o único até então. Desde 2004, outras tempestades tropicais se formaram em alto-mar, mas não chegaram ao solo tupiniquim e não atingiram status de furacão. Em fevereiro deste ano, justamente às vésperas dos 20 anos do Catarina, a tempestade Akará ameaçou tomar como rota os litorais catarinense e gaúcho, porém isto não se confirmou.
"A [tempestade] Anita, em 2010, foi a primeira depois do furacão Catarina, mas permaneceu na costa. Teve depois algumas tempestades subtropicais, que são mais raras que as extratropicais. E recentemente tivemos a tempestade tropical Akará. Curiosamente, desde o furacão Catarina eu não tinha visto o modelo meteorológico mostrando a formação de um furacão com possibilidade de ir em direção a costa e aterrissar na costa. Esse Akará chegou a ter essa previsão que acabou não se confirmando”, afirma Rudorff.
Tempestade Tropical Akará localizada entre a costa de SC e o RS, às 10h30 do dia 19/02. (Fonte: CPTEC/INPE. Adaptado por: SDC/SC)
Mesmo que as rajadas do Catarina tenham ultrapassado os 180 km/h, Rudorff explica o motivo pelo qual ele não está enquadrado na categoria 3: seriam necessários ventos sustentados acima dos 178 km/h e a única medição oficial foi feita em Siderópolis, na barragem do Rio São Bento, a cerca de 50 quilômetros do epicentro do furacão. Lá, a estação meteorológica indicou vento de 146,7 km/h e pressão atmosférica de 994 hPa. A inclusão na categoria 2 está baseada em estudos sobre o impacto do vento nas áreas mais afetadas e próximas ao olho do furacão. Nas cidades costeiras, como Balneário Arroio do Silva, os danos foram mais severos, indicando velocidade maior do que a medida em Siderópolis. A estimativa é que o vento constante tenha chegado a 178 km/h nas áreas mais impactadas.
“A única estação que teve medição foi Siderópolis e ali estava bem distante da costa e realmente não conseguiu pegar com precisão a velocidade dos ventos. A gente estima que pode ter chegado até 180 km/h, algumas rajadas mais intensas podem ter passado disso, mas tem que estar com ventos sustentados para classificação naquela velocidade, não são só as rajadas. A gente precisa ter um vento que permaneça constante durante um tempo para classificar aquela velocidade como vento sustentável e a categoria do furacão”, explica.
O Catarina ficou no limite entre as categorias 2 e 3, porém foi na 2 onde ele se enquadrou de forma confortável. “Teria que ter eventos sustentáveis acima de 179 km/h. Aí ele já poderia entrar numa categoria 3”, argumenta.
Agência americana NHC (Centro Nacional de Furacões) detalha os tipos de estragos por categoria.
O que explica o Catarina?
Para que um furacão se forme, é necessária uma combinação rara para o Atlântico Sul. Resumidamente atende três fatores: temperatura do mar acima de 26.5°C, ar úmido e ventos convergentes em vários níveis da atmosfera. Para se ter uma ideia do quanto o mar da nossa região está distante das condições para formação de tempestades tropicais, dados da Epagri mostraram que a média diária da temperatura superficial do mar (TSM) oscilou na casa dos 23°C no Litoral Sul catarinense em dezembro de 2023. O índice mostra que neste mesmo período o Litoral Norte chegou próximo da temperatura ideal, porém os demais fatores não combinaram.
“A região Sul do Brasil não é uma região favorável para a formação desses tipos de tempestades. A gente tem algumas situações que tem temperatura do mar elevada, ou seja, uma temperatura que é favorável. Mas aqui é uma região que tem muito cisalhamento do vento, que dificulta muito, inibe muito a formação desse tipo de tempestades”, argumenta Rudorff.
A formação de furacões está atrelada a zonas de baixa pressão atmosférica, onde o ar leve sobe levando para a atmosfera o vapor produzido pela água quente do mar. O vapor condensa e parte do calor dele é liberado sobre a atmosfera, reaquecendo o ar e formando uma coluna. Em volta desta coluna sopram ventos que ganham força e ao atingirem 120 km/h fazem com que a pressão atmosférica em uma pequena área dentro da coluna caia depressa, formando o olho do furacão. No olho, a pressão atmosférica é baixa, os ventos leves e quentes, o oposto da parte externa onde há chuva intensa e o vento pode ultrapassar os 252 km/h na categoria 5.
"Então isso é uma coisa bem difícil de acontecer, mas eu acredito que pode se repetir. Tanto é que a gente esteve muito perto agora, justamente nesse ano. Eu acredito que é possível dentro de todas essas condições de temperaturas globais e temperaturas também dos oceanos se aquecendo cada vez mais. Essas condições vão ficando cada vez mais favoráveis para esse tipo de formação de tempestades”, conclui o coordenador de Monitoramento e Alerta da Defesa Civil catarinense.
Casa de madeira voou sobre o rio mampituba, sendo arremessada do RS para SC. (Foto: Divulgação/Defesa Civil)
A previsão
A meteorologista da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina/Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia de Santa Catarina (Epagri/Ciram) Marilene de Lima estava na Feira do Milho, em Xanxerê (SC), na data da passagem do Catarina. Mas antes de seguir rumo a alguma viagem ela sempre pegava por fax, tecnologia à disposição na época, a previsão do tempo, para caso alguém a consultasse sobre o assunto.
Na quinta-feira eu tinha saído de Florianópolis e tinha aquele ciclone na costa, olhamos pela animação e um dos colegas disse até que parecia um furacãozinho.
Marilene de Lima, meteorologista da Epagri/Ciram
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Ela conta que no sábado seguinte ligou pela manhã para Florianópolis e recebeu o fax com a previsão atualizada. “E aí estava lá. Falei com um colega que estava em Florianópolis e ele falou que era um furacão e já tinha até um nome. Eu perguntei: ‘tá, e os ventos?’ Ele respondeu que era vento de furacão, 119 km/h para cima”, disse.
Os registros mostram que no dia 25 de março o Catarina tinha um ‘olho’ bem definido e apresentava bandas de nuvens em espiral. No dia seguinte ele se intensificava e o Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos o classificou como furacão de Categoria 1. Neste momento o assunto passaria a ser divulgado em nível internacional.
Gilsania Cruz, meteorologista da Epagri/Ciram, lembra que estava junto com a equipe quando percebeu uma perturbação no oceano. Ela explica que não existiam, na época, modelos específicos para a rodada de furacões, ou seja, para previsão de comportamentos suscetíveis de depressões tropicais, tempestades tropicais e furacões no Sul do Brasil. Havia apenas os modelos normais atmosféricos que mostravam uma baixa pressão retornando um pouco em direção à costa. Esses modelos são equações matemáticas que calculam as variáveis meteorológicas.
"Hoje ainda não tem, porque não é normal e frequente os furacões no Brasil. O Centro de Furacões dos Estados Unidos da América que atualizaram na época, e hoje quando aparecem ciclones atípicos eles também atualizam. O Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos ou National Hurricane Center (NHC) é a divisão do Centro de Previsão Tropical do Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos, responsável pelo monitoramento e previsão de comportamentos suscetíveis de depressões tropicais, tempestades tropicais e furacões. Está localizado na Universidade Internacional da Florida em Miami".
A equipe começou a fazer a avaliação do sistema. "E, no dia seguinte, observamos que essa perturbação estava vindo, realmente, em direção um pouco mais para a costa, um deslocamento que não é comum”, relembra.
Ela explica que o normal é que o deslocamento aconteça do Sul do Brasil em direção ao Sudeste, se afastando para a Praia Oceânica e não se aproximando. Com isso, no dia seguinte, a opção foi acionar a Defesa Civil para mostrar o que estava sendo observado pelo grupo de meteorologistas.
Satélite GOES-12 mostra a evolução do Furacão Catarina entre os dias 24 e 28 de março de 2004. (Imagem: NOAA)
A partir daí iniciou-se o envio de avisos. Um dos meteorologistas, Clovis Levien Correa, se deslocou até a Defesa Civil e ficou lá, dando informações e também participando das reuniões junto à Defesa Civil. “Os nossos alertas eram emitidos à medida do possível. Com o que ia mudando na previsão, eram enviados as informações para a Defesa Civil, que tomava as cabíveis decisões e o que fariam com relação a isso”, disse Gilsania.
Ela conta que o grupo se viu um pouco sozinho em um determinado momento. “Porque tinha uma divergência muito grande de centros nacionais, inclusive que achavam que não era nada demais. Então, como a gente ficou só um pouco junto com a Defesa Civil, a gente escolheu o nome Catarina aqui dentro junto com os colegas, os meteorologistas aqui da Epagri”, explica.
O furacão foi batizado no dia anterior à sua chegada na costa. Neste momento, a equipe da Epagri definiu se manter em plantão por 24 horas. No início da madrugada do dia 27 de março, à 1h30, o Governo do Estado de Santa Catarina decretou estado de alerta, após uma reunião com a participação de meteorologistas e Defesa Civil.
O monitoramento até a chegada do fenômeno
Para Gilsania, o momento mais marcante foi a chegada do furacão. Com cerca de quatro meses de gestação, ela estava saindo do plantão. A equipe lhe pediu que fosse para casa descansar, mas essa deixou de ser uma opção para ela no momento em que chegou em casa. Quando o furação se aproximou da costa, embora tenha pego mais o Sul de Santa Catarina e o Litoral Norte de Rio Grande do Sul, o vento estava forte em Florianópolis, em torno de 60 km/h.
“Quando esse vento começou, eu não conseguia permanecer em casa e voltei para a Epagri. Comecei a participar também do monitoramento, de toda a situação ali envolvida com a chegada dele. Fizemos áudios nessa época, que foram encaminhados para deixar o pessoal sabendo o que estava acontecendo”, disse.
O Catarina atingiu a costa no sábado. No domingo, Gilsania permaneceu trabalhando, atendendo a imprensa em nível nacional. Outro fato relembrado pela meteorologista é que toda a equipe quase ficou sem voz naquela ocasião, pois era necessário falar, conversar com as pessoas o máximo que fosse possível. “Foi um trabalho bem diferenciado, um trabalho muito bacana que ocorreu aqui. Acho que foi um marco na história da meteorologia aqui da Epagri, de todos nós meteorologistas”.
Depois do fenômeno, o grupo ganhou um prêmio da Sociedade Brasileira de Meteorologia. Para a equipe, o Catarina foi uma divisão na história dos envolvidos. Conforme os registros, “entre os dias 26 e 28 de março, cinco meteorologistas revezaram-se em um período de 60 horas de trabalho ininterrupto, contando com o apoio de funcionários da Epagri e colaboradores externos, no atendimento ao público via telefone. No dia 27, a Epagri recebeu cerca de 3 mil ligações telefônicas, atendendo público e imprensa”.
"Foi uma experiência única. Espero não repeti-la"
A partir do momento em que se confirmou que o Catarina chegaria ao continente trazendo estragos, começou também a mobilização para que fosse possível entender o que poderia acontecer com a população do Sul catarinense. Foi grande a movimentação envolvendo forças de segurança. Com o fato de que equipes se espalhavam pelo território, em seus respectivos batalhões, foi natural que uma força-tarefa fosse concentrada para estar na capital do estado e pudesse orientar em tempo real aqueles que encararam de frente o "combate" no Sul.
Entre a equipe reunida em Florianópolis estava o meteorologista da Epagri/Ciram Clovis Levien, que coordenava o setor de meteorologia da entidade na época. "Foi uma experiência única. Espero não repeti-la", respondeu à reportagem do Portal Engeplus assim que nossa conversa sobre aquele dia começou.
Com a passagem do Catarina pelo Sul catarinense, foi possível que as equipes registrassem o fenômeno pela primeira vez no Brasil. "Eu sempre digo que essa foi a primeira vez que foi registrado. Porque agora temos tecnologias que antes não existiam. Muita coisa aconteceu e não ficamos sabendo. Então não podemos dizer que nunca aconteceu antes. Mas ele [o Catarina] é o primeiro registro que temos na 'era do satélite'", explica Levien.
Para o meteorologista, foi o registro via satélite que possibilitou definir que o fenômeno era, de fato, um furacão. "Se você olhar de cima, consegue visualizar bem [que é um furacão]. Quando você está embaixo do sistema, ele aparenta ser uma tempestade muito grande e pesada, com vento forte. Parece uma nuvem de tempestade", explica.
Desde então, o Catarina permaneceu sendo o único registro deste tipo feito no país. "Agora é preciso esperar, analisar. Nenhum outro fenômeno chegou perto dele. Tivemos pontos [parecidos], mas a dinâmica da atmosfera foi diferente. Avaliamos outros períodos, mas nenhum foi igual", reforça Levien.
Catarina versus Katrina - um dos furacões mais conhecidos do mundo
Apesar de os moradores do Sul do país estarem acostumados, de certa forma, à incidência de tempestades e ventos mais fortes, o Catarina tornou-se um acontecimento único para o Brasil. No entanto, é comum acompanharmos em noticiários mundiais fenômenos de ciclones e furacões atingirem outros países. O maior e mais conhecido furacão a ser registrado nos anos 2000 foi o Katrina, que atingiu a região de Nova Orleans nos Estados Unidos e causou mais de mil mortes em 2005.
A primeira diferença entre os dois é a categoria que atingiram na escala Saffir-Simpson: o Catarina atingiu a categoria 2, e o Katrina chegou a estar na categoria 5 enquanto estava sobre o oceano. Os ventos do Catarina atingiram, em seu momento de velocidade máxima, rajadas de 180 km/h, enquanto o Katrina chegou a atingir 280 km/h.
Se registrado no Sul de Santa Catarina, segundo o meteorologista Clovis Levien, o Katrina teria destruído praticamente tudo. "No Brasil, nunca tivemos um fenômeno desses. Nossas casas não foram preparadas para aguentar essa intensidade de vento. Seria uma destruição muito superior, e morreria muito mais gente", confirma.
Para fins de comparação e para que seja possível visualizar a dimensão do Catarina, o Portal Engeplus preparou a tabela abaixo:
E o nome do furacão?
Como furacões são recorrentes na América Central e América do Norte, os norte-americanos seguem uma sequência e escala com regras para nomear tempestades. "Isso já ocorre por lá há mais de uma década. Eles já sabem, inclusive, os nomes dos próximos [que ainda nem aconteceram]", explica Levien.
Essas regras, entretanto, não valiam por aqui. Por isso, dar nome ao fenômeno que atingiria o Sul catarinense em março de 2004 ficou à cargo da equipe liderada por Levien. "Foi a equipe de meteorologistas da Epagri/Ciram que nomeou o Catarina. A Gil chegou e nos disse: olha, saiu uma nota das instituições dizendo que não tem nome para o evento até agora. E um cara dos EUA inventou um nome esdrúxulo. A partir daí, passamos a pensar em vários nomes", conta o meteorologista.
A lista de possíveis nomes foi variada. Mas como a trajetória do furacão seguiria o Litoral de Santa Catarina, a equipe limitou as possibilidades a duas: Anita ou Catarina - que venceu a batalha.
No olho do furacão, a calmaria
Imagem mostra dimensão do Catarina, o primeiro furacão a atingir a costa do Brasil. (Arte: Frederico Rudorff/Divulgação)
Quando a confusão vem, é comum que as pessoas digam que estão "no olho do furacão" para explicar que a situação está uma bagunça. Mas não é bem assim que acontece, de fato, quando estamos por lá de forma literal. Ao contrário de tudo o que acontece em volta, em meio ao vendaval causado pelo fenômeno, no olho está uma certa calmaria. "No centro do furacão não tem vento. E muitas vezes dá para enxergar as estrelas", explica Levien.
Para se ter uma ideia do tamanho do furacão, uma imagem do sensor Modis (foto acima) obtida no dia 27 de março de 2004 mostra que o Catarina apresentou diâmetro de 650 quilômetros associado à área de influência indireta e de 500 km de influência direta. O diâmetro do olho teve cerca de 50 km. A ilha de Santa Catarina mede 54 km de extensão norte/sul e praticamente caberia dentro dele.
O meteorologista explica que em qualquer tempestade, a pressão baixa na redondeza. "A instabilidade criada faz com que a pressão atmosférica comece a baixar. Lembra o processo de chuva: puxa a umidade do oceano ou da superfície e leva para cima. Neste momento que leva a umidade, forma a nuvem, e diminui a pressão atmosférica. As características de maior pressão acontece naqueles dias de inverno, com céu limpo e sem nuvens."
Em uma ocorrência de furacão, isso pode ser perigoso, por levar a população a acreditar que o pior já passou. Em casos como este, após a passagem do olho, o pior ainda está por vir. "O pessoal estava acostumado com passagem de frentes frias, que vêm e vão embora. Normalmente, assim que essas tempestades se deslocam, é hora de verificar os estragos. Neste caso não era assim", relata Levien.
De acordo com Levien, o Catarina entrou no continente com ventos do Sudeste. Primeiro chegou à terra uma borda do furacão. Depois chegou o olho. "Na calmaria do olho, o pessoal começou a subir nos telhados para resolver os problemas, arrumar as coisas. Mas quando o olho passa, logo em seguida o vento vem forte, e no sentido contrário", relembra o meteorologista.
Após a passagem do olho do Catarina, chegou ao continente a outra borda do furacão. Desta vez com ventos Norte/Nordeste. "Foi só o tempo de alertarmos os comandantes das forças de segurança para que eles retirassem as pessoas dos telhados e mandassem de volta a locais seguros. Uma hora depois, o vento entrou mais forte", conta Levien.
No olho do furacão
Imagens do satélite GOES-12, operado pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês), agência ligada ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos que atua na previsão do tempo, monitoramento de condições atmosféricas e oceânicas, e mapeamentos dos mares, indicam que no dia 20 de março de 2004 o Catarina se desprendeu de um ciclone extratropical a cerca de 1.000 quilômetros da costa brasileira. Conforme se deslocava no sentido Oeste, em direção ao continente, a tempestade ganhava força e atingiria o litoral catarinense na região de Araranguá na noite de 27 de março.
Pesquisadores do Grupo de Estudos de Desastres Naturais (GEDN) da Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) se deslocaram para Balneário Arroio do Silva a fim de estudar o fenômeno e introduzi-lo ao Atlas de Desastres Naturais do Estado de Santa Catarina, publicação oficial da Defesa Civil. Participaram das observações os geógrafos Emerson Vieira Marcelino e Roberto Fabris Goerl, o físico Reinaldo Hass, e o atual coordenador de Monitoramento e Alerta da Secretaria de Estado da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina, Frederico Rudorff, que fazia parte como oceanógrafo.
Segundo o relato publicado no artigo, ao chegarem no município, onde a previsão indicava a passagem do olho, os pesquisadores encontraram a cidade esvaziada, fruto de diversos alertas emitidos pela Defesa Civil. Naquele instante, o vento soprava a cerca de 40 km/h, com rajadas mais intensas. O mar apresentava ondas de até 3 metros.
Imagem do satélite GOES-12 mostra o Catarina atingindo a costa na noite de 27 de março de 2004. (Imagem: NOAA)
No decorrer da noite, o mar avançou progressivamente até atingir a duna frontal às 22h14. Já na madrugada de domingo, dia 28, o vento aumentou a velocidade de forma suficiente para arrancar estruturas de lazer fixadas na praia. À 0h36, o vento chegou aos 100 km/h iniciando o período mais crítico desta primeira fase, com temperatura baixa e chuva forte. As rajadas atingiram 120 km/h causando queda de árvores e postes, destruição de telhados de casas de madeira e pequenos galpões.
“A gente chegou em Balneário Arroio do Silva às 17h45. Estimamos que o vento Sul, que foi a primeira borda do furacão, chegou no pico perto da 1h15. Aí o vento praticamente parou”, lembra Rudorff, mencionando a chegada do olho.
Quando o olho chegou, a chuva e o vento cessaram rapidamente enquanto a temperatura subiu consideravelmente. “Teve uma calmaria absurda do vento, era possível visualizar estrelas no céu. Naquele período a gente estava bastante cansado por toda a viagem e cochilei durante a passagem do olho”, relata.
Neste período de calmaria, moradores das áreas afetadas saíram em busca de auxílio. Outros que haviam se deslocado para áreas seguras retornaram para observar o possível estragado feito pelo vento.
Como um rio, mar flui em direção ao Sul
O pior ainda estava por chegar. A segunda borda do Catarina entrou inteira no continente às 2h48. E tudo mudou bruscamente. A violência do vento era ainda maior soprando para o Sul. As rajadas em torno de 180 km/h provocavam um barulho assustador comparável a turbina de um avião. Estruturas que haviam resistido ao primeiro estágio agora eram estremecidas. A equipe de pesquisadores temia pela própria vida.
“Quando veio a segunda borda do furacão foi uma outra chave porque antes a gente conseguia enfrentar ele de forma que dava para encarar. A segunda borda era uma situação que realmente a gente estava correndo risco de morte. A impressão que dava é que se a gente desse um passo para frente poderia sair voando porque era uma velocidade muito forte do vento”, lembra Rudorff.
Outro exemplo que ajuda a ilustrar o tamanho do impacto do Catarina foi no mar. O vento que soprava em direção ao Sul, a mais de 150 km/h em sua velocidade constante fora as rajadas intensas, fez com que o mar fluísse em direção ao Sul, de forma paralela à praia. O fenômeno foi observado pela equipe de pesquisadores da Ufsc.
“Realmente a gente via assim: era uma parede de água se deslocando e parecia um rio descendo acompanhando toda essa velocidade do vento. Então foi muito interessante porque a gente estava numa situação de vento contrário. Depois aquela questão de calmaria e depois um outro vento numa situação de direção oposta e muito forte. A força da natureza realmente é uma coisa que impressiona”, afirma.
Gráfico mostra a evolução da velocidade do vento entre 27 e 28 de março de 2004.
A mudança repentina da condição climática entre a passagem do olho e a chegada da segunda borda do Catarina causou impacto direto sobre os pesquisadores. Durante o olho, a queda na pressão atmosférica fez com que eles sentissem sonolência, mas agora, já com as fortes rajadas e a exposição extrema para o vento, os pesquisadores sentiam o impacto da queda de temperatura. Tremiam diante do frio e em função do choque térmico. Enquanto isso, um deles estava no interior da caminhonete da Defesa Civil e tentava se proteger com os pés no para-brisas.
“Foi meio que desespero. Uma sensação de pânico para todo mundo, uma sensação que nunca tínhamos experimentado. Eu sempre gostei de observar tempestades. Desde criança quando tinha temporais de verão ficava na sacada e às vezes ia tomar banho de chuva. Sempre tive admiração muito grande por observar tempestades. Aquele [momento] passou do limite da admiração, estava no estado de contemplar algo inesquecível, de presenciar a força da natureza, mas ao mesmo tempo com medo de eventualmente perder a vida”, relata Rudorff.
Rastro de destruição
Em Balneário Arroio do Silva, onde a equipe estava, o vento diminuiu para força 9 às 4h30, soprando a uma velocidade entre 75 e 87 km/h. Neste momento, equipes do Corpo de Bombeiros e outras instituições puderam se locomover dando início a fase de primeiros socorros. Às 7 horas, os pesquisadores iniciaram o deslocamento para outros municípios, com o objetivo de analisar os danos causados pelo furacão.
O levantamento com base nos Avadans concluiu que 55.952 edificações foram afetadas pelo Catarina. Deste montante, 80,1% equivalem a residências danificadas e 15,1% a imóveis comerciais danificados, conforme mostra a tabela abaixo:
Os municípios de Araranguá, Balneário Arroio do Silva, Balneário Gaivota, Sombrio, São João do Sul, Santa Rosa do Sul e Passo de Torres fazem parte da área onde o Catarina provocou danos de intensidade ‘muito alta’, o que corresponde a danos generalizados com destruição de casas de madeira e de tijolos, grandes árvores tombadas e quebradas, e perda total na agricultura.
Embora o vento tivesse atingido patamares próximos dos 150 km/h em Siderópolis, a região do Costão da Serra não registrou danos severos ou significativos. Em Siderópolis mesmo houve registro de apenas uma casa destruída, enquanto em Balneário Arroio do Silva foram cerca de 150 casas – maior índice entre os municípios afetados.
Serra Geral evitou tragédia maior
Outro detalhe sobre o Catarina está em sua dissipação. Diferente do que ocorre no Golfo do México, quando os furacões entram no continente americano e percorrem grandes distâncias, aqui o Catarina perdeu força após atingir a costa. Rudorff explica que a Serra Geral teve grande impacto nisso ao não oferecer umidade, temperatura e pressão que pudessem alimentar o fenômeno.
“Nos Estados Unidos, a região do golfo tem uma área muito plana, extensa por muitos quilômetros para dentro. Aqui temos uma área bem plana e depois a Serra Geral. A proximidade da Serra Geral foi determinante para dissipar ele mais rápido”, afirma.
No estudo, os pesquisadores explicam que esta característica também refletiu nos danos provocados pelo Catarina nas regiões próximas a Serra Geral. Enquanto no Litoral a destruição foi severa, as cidades de Praia Grande, Jacinto Machado, Timbé do Sul, Nova Veneza e Siderópolis tiveram danos maiores na agricultura.
“No litoral, em virtude da ausência de barreiras topográficas, os ventos atingiram as edificações com intensidade máxima. Mas, ao deslocar-se algumas dezenas de quilômetros, perdeu praticamente toda a sua intensidade. Tanto que, apesar de terem sido registradas algumas rajadas mais intensas nos municípios do planalto catarinense, os danos foram inexpressivos. Em alguns pontos próximos a Serra também foram detectados locais com danos mais concentrados. Isto se deve ao efeito de canalização dos ventos em vales e encostas da região”, diz o artigo.
Torres: o município mais impactado no Rio Grande do Sul
Do lado gaúcho, pelo menos quatro municípios registraram danos causados pelo Furacão Catarina. Os estragos mais severos aconteceram em Torres, que faz divisa com o estado catarinense. No dia 27 pela manhã, o monitoramento da Defesa Civil do Rio Grande do Sul indicava a trajetória do ciclone tropical para atingir uma área entre Porto Alegre e o Sul de Santa Catarina, percorrendo um caminho na direção Oeste/Sudoeste.
Horas depois, o furacão acabou alterando a sua rota para Oeste/Noroeste, o que apontava os principais impactos para os municípios mais próximos do território catarinense. E foi o que aconteceu. Além dos torrenses, moradores de Dom Pedro de Alcântara, Arroio do Sal e Três Cachoeiras também sentiram com maior intensidade a força dos ventos.
Em Torres concentraram-se os estragos de maior relevância. Dados da Defesa Civil do RS mostraram que 2.221 casas populares foram danificadas. Unidades de serviços de saúde (uma privada e outra pública) e educação (três privadas e 16 públicas) tiveram prejuízos. Foram 15 edificações rurais atingidas e 20 industriais. Até mesmo as estradas não foram poupadas pelo furacão. Pelo menos 150 mil metros quadrados foram impactados de alguma forma.
Na agricultura, os danos calculados se aproximaram do valor de R$ 5,5 milhões. Os prejuízos foram expressivos nas culturas de arroz (15% de perda de 3,5 mil hectares), da banana (70% de perda de 170 hectares), do milho (60% de perda de 150 hectares), do maracujá (60% de perda de 35 hectares) e do tomate e pimentão (50% de perda de 20 hectares). Os pescadores artesanais perderam pelo menos 100 redes em lagoas da região.
No município não houve mortes, apenas pessoas com leves ferimentos. A Secretaria de Agricultura de Torres relatou ainda danos ambientais de alta intensidade no desmatamento da flora e em baixa intensidade nos esgotos sanitários.
Entre os mortos, a maioria estava no mar
Não foi apenas a destruição de estruturas físicas que o Catarina trouxe como consequência para a comunidade catarinense. No total, onze pessoas perderam a vida em decorrência do fenômeno. Dez delas morreram no mar.
A Delegacia da Capitania dos Portos em Laguna confirmou ao Portal Engeplus que no dia 28 de março de 2004, duas embarcações registradas em Itajaí (SC) naufragaram a cerca de seis milhas náuticas ao sul da Laje de Campo Bom, no litoral de Jaguaruna. Eram dois barcos de pesca: Antônio Venâncio e Valio II.
Segundo a Marinha do Brasil, no Antônio Venâncio estavam sete tripulantes. Um corpo foi resgatado, enquanto seis permanecem desaparecidos. Já no Valio II estavam seis tripulantes a bordo. Destes, três foram resgatados com vida, um foi encontrado morto e dois foram dados como desaparecidos. "O saldo dos dois acidentes foi três tripulantes resgatados com vida, dois corpos encontrados e oito tripulantes desaparecidos", explica a instituição.
Na época, participaram das buscas aos náufragos embarcações, navios e aeronaves da Marinha do Brasil e aeronaves da Força Aérea Brasileira.
Os registros das embarcações
Foi possível para a Marinha saber quem estava ao mar, na época, em razão dos registros realizados pelas embarcações. Isso, no entanto, não acontece em todos os casos. De acordo com a instituição, toda embarcação de pesca de grande porte tem a obrigação de informar à Capitania, Delegacia ou Agência mais próxima que está se fazendo ao mar, através do “Despacho de Embarcações”.
"Neste documento, são informados os dados da embarcação, nome e categoria dos profissionais, quantidade de tripulantes, portos de partida e chegada e outras informações importantes para serem utilizadas, principalmente, em casos de eventos de busca e salvamento (SAR)", explica a Capitania dos Portos em Laguna.
As embarcações de pequeno porte, entretanto, são dispensadas deste procedimento. "Isso torna difícil mensurar a quantidade exata de profissionais e amadores que estão em alto mar trabalhando ou praticando atividades de esporte e recreio", explica a instituição.
Recentemente, a Marinha do Brasil disponibilizou o aplicativo NAVSEG, voltado aos condutores das mais de 900 mil embarcações que existem no país. Ele tem o objetivo de aumentar a segurança desse tipo de transporte e uma de suas principais funções é o rastreamento mais célere pelas Capitanias dos Portos, suas Delegacias e Agências, em caso de emergência.
"O aplicativo foi criado especialmente para proteção de embarcações de esporte e de recreio, todavia, também pode ser usado por condutores de embarcações de pequeno e médio porte, como as de pesca, turismo náutico e transporte comercial de passageiros ou de carga", reforça a Capitania dos Portos.
Os tripulantes de embarcações em emergências marítimas podem solicitar ajuda via radiotelefonia pelo canal 16 (VHF), através do telefone 185 (SALVAMAR SUL), e outros sistemas de Alerta, compostos pelos sistemas INMARSAT, COSPAS-SARSAT e DSC, todos integrantes do GMDSS.
Pesadelo no Atlântico Sul
Eu ouvi muitas coisas: pessoas pedindo socorro e informando que a embarcação não ia aguentar. São coisas que marcam e nasce o sentimento de, por vezes, sabendo que vai dar uma tempestade, ir na estação de rádio e passar uma previsão e um alerta.
Amilton Lopes Roldão, ex-comunicador da estação meteorológica de Passo de Torres
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A tragédia envolvendo os barcos Antônio Venâncio e Valio II também impactou a vida de Amilton Lopes Roldão, morador de Passo de Torres. Ele trabalhava na estação meteorológica do município e esteve em contato com embarcações nos dias que antecederam a chegada do furacão e também no sábado, quando o sistema já atuava com força no Atlântico Sul e na costa catarinense.
A estação de Passo de Torres era responsável por informar a previsão do tempo e condição do mar em uma área de abrangência que podia pegar entre São Paulo até o Chuí, no litoral Sul gaúcho. Roldão também repassava informações de familiares para pescadores que ficavam mais tempo no mar, como o nascimento ou a morte de parentes.
O trabalho nos dias que antecederam a chegada do Catarina foi intenso. Em um primeiro momento existia a descrença de que um furacão realmente aconteceria. Porém, o relato de pescadores em alto-mar faziam com que a opinião de Roldão mudasse, provocando também a intensificação dos avisos e alertas.
“Não imaginei que fosse tão real. Comecei a ouvir algumas embarcações da área de Itajaí, daquela região, que estavam trabalhando com cação bem distante da costa, a cerca de 500 metros de profundidade. E ouvi o relato de um pescador que me parecia bastante experiente. Inclusive, ele chegava a chorar relatando algo extremamente forte”, relembra.
De acordo com Roldão, o pescador relatou a quebra da proa da embarcação, danos nas antenas de rádio, quebra de vidros e outros estragos. A realidade em alto-mar mostrava que o cenário para embarcações menores, que trafegavam mais perto da costa, seria ainda mais grave.
“Tinha muitas embarcações que estavam trabalhando com a corvina na região de Araranguá, Arroio do Silva, Laguna e Santa Marta. A gente foi avisando e várias embarcações foram se afastando. Cada relato que vinha atestava que o sistema era forte e estava vindo. Na hora que ouvi o depoimento do senhor bem afastado da costa, coloquei mais ênfase na minha comunicação”, conta.
“A pesca estava boa”
Roldão lembra ter conversado diretamente com o responsável por uma das embarcações que naufragou. De acordo com ele, às 8 horas de sábado o vento já atuava com força em uma área oceânica com cerca de 400 metros de profundidade. Já por volta das 10 horas, o Catarina atingiu áreas com 200 metros de profundidade.
Com a intensificação dos alertas, Roldão ouviu do responsável pela embarcação que a pesca estava boa e próxima de ser concluída. Então o material seria recolhido e o barco conduzido para a barra de Laguna.
“Tinha um que naufragou que estava em final de viagem. Tinha uma pesca boa na embarcação e provavelmente o barco já está mais baixo. Estava terminando o material e iria para a barra de Laguna. Continuei dando ênfase que era vento forte e que já tinha atingido embarcações grandes. O que eles mais perguntavam é como estava nos outros lugares, pois era um sistema que estava vindo do mar para a terra. A visão que tenho é que eles imaginaram que daria para colher o material e chegar na barra antes do vento chegar”, explica.
O último contato
Às vezes me coloco no lugar daquelas pessoas. Eu pesquei e vivi isso com meu pai e meu irmão. Fica o sentimento de que eu poderia ter feito mais, mas eu estava atrás de um rádio passando a informação e quem tem o comando da embarcação é quem está lá. Mas as vezes fico me questionando se poderia ter sido diferente.
Amilton Lopes Roldão, ex-comunicador da estação meteorológica de Passo de Torres
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Era 21 horas daquele sábado quando Roldão lembra ter ouvido o capitão da embarcação pela última vez. Por volta das 23 horas, outras embarcações comunicavam por rádio que o barco havia naufragado, informação que seria confirmada na manhã de domingo. “O que ouvi [pela última vez] é que a embarcação não estava aguentando mais e que era muito vento”, lamenta.
O trabalho de Roldão se estendeu até 23 horas, quando a área em que ele estava na cidade de Passo de Torres ficou sem energia. O vento produzido pela primeira borda atingia o município e causava destruição.
“Comecei a ouvir barulho de telhas arrancando e começou a chover, aí não consegui ouvir e atender mais ninguém. Eu e outro senhor que estava lá fomos para baixo de uma mesa. Eu trabalhei 14 anos na estação de rádio. Eu passei previsões de bastante vento, principalmente no inverno, de 100km/h, um pouco mais. Nesses 14 anos ouvindo as pessoas antes disso, nunca ouvi alguém relatar um vento daquele ali”, pondera. Apesar dos estragos generalizados em Passo de Torres, a casa de madeira onde Roldão vivia com o pai perdeu apenas uma telha.
Tragédia em Araranguá
Se no mar o Catarina vitimou dez pessoas, em terra a única vítima foi Edson Lourenço Quirino (foto ao lado), 43 anos. Ele vivia em uma casa de madeira localizada no bairro Sanga da Toca 1, próximo à BR-101, em Araranguá. Na passagem da primeira borda do furacão, o vento Sul produzia rajadas acima dos 120 km/h que foram suficientes para derrubar duas árvores de grande porte sobre o imóvel. Preocupado, Quirino reuniu a esposa Terezinha, 40 anos, as filhas Milene e Josiane, de 9 e 16, e o filho Edevaldo, 20 anos, e abrigou a família na casa de uma prima, a cerca de um quilômetro de distância.
“A gente saiu de casa e pulou a janela de trás, porque não dava para sair pela porta da frente. Já estava um vento bem forte. Quando deu a parada do vento, no olho do furacão, a gente voltou. Daí o vento virou e recomeçou”, recorda Milene, hoje com 29 anos.
Quirino reuniu a família dentro do Fusca com a intenção de retornar para a casa da prima. E foi onde a tragédia aconteceu. Mesmo com a falta de energia provocada pela queda de postes e árvores sobre a rede elétrica, Milene conta que em meio a madrugada era possível enxergar com clareza tudo o que se passava.
“Não tinha luz, mas não era uma noite escura. Eu não entendo como. Embarquei atrás do meu pai, que era o motorista. A minha cunhada estava no meio. A minha irmã atrás do banco onde a minha mãe sentou. E o meu sobrinho no colo da minha irmã. Meu pai veio com o carro e encostou bem no pé daquela árvore que estava caída em cima da casa. Até me lembro que eu falei para tirar o carro que a árvore ia cair em cima”, explica.
Milene recorda que o pai dela se movimentou para frente com a intenção de observar o que estava acontecendo, mas em poucos segundos o vento arremessou a árvore sobre o Fusca, atingindo a parte dianteira onde estavam Quirino e Terezinha. “O vento levantou a árvore de novo e ela caiu em cima do carro. Só que o banco da minha mãe estava quebrado e ela caiu para trás”, afirma Milene.
Quirino acabou prensado contra o volante. A família acionou o socorro dos bombeiros, mas quando a guarnição chegou no local, já pela manhã, constatou que Quirino havia morrido com o impacto da árvore. Terezinha e os demais ocupantes do carro sobreviveram, mas ela sofreu um ferimento grave no baço e foi internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional de Araranguá. “A gente não sabia se ela ia viver”, diz Milene.
Terezinha ficou três dias na UTI e outros 20 dias internada no hospital. O roteiro vivido pela família naquele final de semana jamais será esquecido e produziu traumas que o tempo não curou. “Hoje mesmo começou um vento e eu me escondi dentro do banheiro. Eu morro de medo. Se meu filho estiver na escola e começar um vento, eu ligo para a escola e quero buscar na hora. Antes do furacão eu não tinha tanto medo. Eu não me lembro de ter medo assim, de ter trauma assim, porque a gente ficou com trauma. E não foi só eu”, afirma.
“Fiquei com muito medo de ganhar naquela noite”
Sobrinha de Edson Lourenço Quirino, Joice Quirino de Souza tinha 19 anos quando o furacão chegou em Santa Catarina. Grávida de 9 meses, ela temia que o parto acontecesse justamente em meio ao pavor provocado pelas rajadas. Moradora de Araranguá, uma das cidades mais atingidas pelo fenômeno, ela recorda o que viu naquela noite.
“Ninguém imaginava que ia acontecer aquilo. O Ronaldo Coutinho tinha falado, mas até então nunca tinha acontecido e todo mundo achava que ele estava mentindo. Era um sábado normal, com uma cara de chuva, um tempo estranho, mas nada que a gente esperasse que fosse como aquela noite. Então, anoiteceu”, lembra
Por volta das 22 horas, o vento chegou com força no bairro Mato Alto, onde Joice morava. O cenário era de guerra e o risco da casa ser atingida por algum objeto era iminente. “Era um vento muito forte. A gente escutava as telhas dos vizinhos batendo na parede, aquela coisa que a gente não imaginava. As telhas da nossa casa voavam e a dos outros batiam na nossa casa. Quando foi meia-noite, parou o vento”, conta.
A primeira borda do furacão passou, iniciando a calmaria provocada pela chegada do olho. Este momento serviu para Joice monitorar algum possível dano na casa e também observar como estava o lado externo e a vizinhança. “Foi quando a gente abriu a janela e eu lembro que na época tinha o Araras, que tinha baile todo sábado à noite. E algumas pessoas estavam indo para o baile, porque era meia-noite. As pessoas passavam e pisavam em cima das telhas. E a gente foi lá atrás e tinha destelhado a sala de costura onde trabalhavamos”, explica.
Após a passagem do olho, o vento reiniciou ainda mais forte. Joice se abrigou na sala, considerando o local mais seguro que os demais já que a cozinha, nos fundos, já estava com uma parte destelhada, e os quartos na parte da frente eram agora atingidos pelas rajadas. O temor de dar à luz a pequena Manuela aumentou. “Fiquei com muito medo de ganhar naquela noite, mas a Manu deveria estar com medo porque a minha barriga subiu”, lembra. “Eu fiquei a noite toda sentada na sala. No canto do meu quarto a telha tinha arrancado e batia. Aquilo me deixou com muito medo. Foi uma noite terrível para nós”, relata.
Manuela de Souza Barbosa nasceu no dia 7 de abril de 2004 em cesárea realizada no Hospital Regional de Araranguá. O parto aconteceu dez dias depois da passagem do Catarina.
Domingo de tristeza para a família
Passada a preocupação da madrugada, o amanhecer reservava o momento mais triste para Joice naquele final de semana: a notícia da morte do tio. O velório e o enterro precisaram ser abreviados em função da falta de energia na cidade.
“Quando amanheceu o dia, foi pior ainda. Porque quando amanheceu veio a notícia que o tio tinha morrido naquele vento. Se a noite para nós tinha sido ruim, para eles tinha sido bem pior. Eu tenho pavor de vento, talvez por conta de eu estar quase ganhando um neném. E depois foi um velório muito triste, que a gente olhava para aquelas três pessoas ali, a Milene era uma criança, ao redor daquele caixão, numa cidade destruída. Então eu tenho péssimas recordações. Eu tenho trauma de vento até hoje”, emociona-se.
A passagem do Catarina seguiu produzindo efeitos na família. No dia 19 de abril de 2005, Joice perderia a avó Ondina Gomes Quirino, de 78 anos. Os familiares acreditam que a perda do filho tenha provocado a morte de Ondina. “Ela ficou sentada na cadeira de balanço dela e não acreditava que o filho tinha morrido naquela noite. Então também foi bem triste. Ela ficou destruída. Depois daquele vento ela foi minguando, minguando... os médicos não souberam falar [a causa da morte]. Uns falaram que foi câncer no intestino, outros a idade, mas para mim foi tristeza. Ela ainda durou um ano por conta do nascimento da Manu. Ela embalava a Manu o dia todo”, explica.
Atualmente, Joice e Manuela moram em Turvo, também no Extremo Sul Catarinense.
O despertar da solidariedade
A crise humanitária que se instalou nos dias seguintes ao 27 e 28 de março de 2004 despertou com naturalidade no coordenador da Cruz Vermelha filial de Criciúma, Almir Fernandes, a vontade de ajudar famílias que se encontravam em profunda necessidade naquele momento.
Ele esteve à frente de uma campanha de arrecadação e transporte de donativos às áreas atingidas de Criciúma, com apoio do Exército, por meio do 28º Grupo de Artilharia de Campanha (28° GAC), e da Polícia Civil. Essa era a principal carência no pós-desastre, mas teve ainda a distribuição de material de construção, telhas e móveis. A Cruz Vermelha, com apoio do Exército, também ajudou em cortes de árvores, auxiliando os bombeiros que tinham muitos chamados.
Na época, Fernandes trabalhava no Instituto Médico Legal (IML), que pertencia à Polícia Civil. Na condição de policial civil ele estava de plantão naquela noite. Ele também estava morando na Associação da Polícia Civil, onde residiu por 17 anos, tendo à disposição uma viatura. Isso facilitou o engajamento na ação solidária.
Cruz Vermelha, exército e bombeiros realizam ações solidárias durante a crise humanitária. (Fotos: Arquivo/Cruz Vermelha)
“Eu me ofereci. Ninguém veio pedir a minha colaboração. Na condição em que estava me vi obrigado a fazer algo a mais além do plantão, das ocorrências”, afirmou. Ele lembra ainda que não havia celular com foto, por isso não há muitos registros do fato. As fotos eram tiradas com máquinas antigas, em que necessitavam ser reveladas.
O movimento que existe atualmente com uma coordenação e alinhamento de órgãos que atuam com doações em situações como essa começou a ganhar força após o Furacão Catarina. Até então cada um se portava numa função específica e as tarefas aconteciam com ajuda de voluntários. “Cada um fazia da sua maneira com o que tinha disponível, máquinas da prefeitura atuando localmente”.
Tenho a impressão de que nessa época começou a se formar o movimento da Equipe Multi-Institucional
Almir Fernandes, coordenador da Cruz Vermelha filial de Criciúma
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Uma família ajudando outras famílias durante o furacão
Muitas pessoas precisaram deixar suas casas durante o evento climático e, para isso, precisaram de ajuda do Corpo de Bombeiros. Diversos militares saíram das suas moradas com a missão de ajudar o próximo e, principalmente, de salvar vidas.
Em Criciúma, dois militares deixaram o mesmo endereço rumo ao 4º Batalhão de Bombeiros Militar (4º BBM) de Criciúma. Pai e filho se despediram da família e foram em uma das maiores missões das suas vidas. Ausenir da Silveira, atualmente sargento da reserva, e o tenente-coronel Henrique Piovezam da Silveira, hoje comandante do 4º BBM, atuaram juntos no furacão Catarina.
Pai e filho atuaram juntos no socorro à população durante a passagem do Catarina. (Foto: Thiago Hockmüller/Portal Engeplus)
Na época, Ausenir era cabo e Henrique soldado. “O comando trouxe a informação entre quinta e sexta-feira, bem próximo do fim de semana, mas não tinha nada muito certo, podia acontecer, mas também não podia. Mas nos alertaram”, lembra o atual comandante do 4º BBM.
Já o sargento da reserva recorda que no sábado, os militares foram chamados para o batalhão. “Por volta das 17 horas, o comandante na época, o capitão João Carlos Leão Corrêa chamou o efetivo para passar as informações. Ele nos informou que a previsão apontava para um furacão. Ficamos duas horas no quartel recebendo orientações. Foram montadas equipes e depois fomos dispensados. Nos avisaram para ficarmos atentos aos telefones e qualquer ocorrência nos chamariam”, comenta.
Pai e filho contam que por volta da meia-noite, ambos foram chamados. Eles moravam no bairro Santa Augusta, em Criciúma, e foram juntos ao batalhão. “Deixamos minha mãe e avó em casa sozinhas. Orientamos elas, caso acontecesse algo era para ligar no telefone 193. Mas, naquele momento, precisávamos sair para ajudar as pessoas. Nossa primeira ocorrência foi no bairro Comerciário para socorrer uma família. Estava a mãe com as crianças e o telhado da casa foi arrancado pela força do vento. Elas precisavam ser retiradas do local. Na época, utilizamos uma viatura da Polícia Civil, pois não tínhamos tantos veículos como hoje”, conta Henrique.
A primeira família resgatada pelos dois bombeiros foi levada ao Ginásio Municipal de Esportes de Criciúma. “Este era o local montado pela prefeitura para abrigar as pessoas. Deixamos a mãe e as crianças no ginásio, ninguém ficou ferido e já fomos para as outras ocorrências”, afirma Ausenir. “As pessoas nos chamavam por meio de ligações no 193. Não existia a tecnologia de hoje, não tínhamos como trocar mensagens ou qualquer coisa do tipo. Equipes maiores foram para a central e atendiam as chamadas e repassavam”, acrescenta.
O tenente-coronel Silveira afirma que as ocorrências atendidas durante a madrugada eram de ajuda humanitária. “Precisávamos tirar as pessoas das casas afetadas pelo furacão. Nosso objetivo era retirá-las de um local em perigo e colocá-las em um ambiente seguro e, assim, fazíamos. Nós não pensávamos em nós e, sim, no próximo. Claro, tínhamos um cuidado, mas o pensamento era ajudar e nenhum bombeiro se feriu durante o furacão”, destaca.
Furtos
Apesar dos fortes ventos e da chuva, também houve quem cometesse crime naquela noite. O tenente-coronel e comandante do 4º BBM recordou do fato no vídeo abaixo.
Após uma madrugada repleta de serviço retirando famílias afetadas pelas chuvas, transportando pessoas para o Ginásio Municipal e, claro, também atuando em ocorrências de queda de árvores em residências e ruas, os bombeiros também precisaram encarar o amanhecer e com a luz do sol conseguiram realmente ter a dimensão do estrago deixado pelo Catarina.
Havia preparo do Corpo de Bombeiros para atuar em um furacão?
Atualmente, o Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina atua em diversas ocorrências no Estado e também em todo o território nacional em tragédias ambientais ou até mesmo em ocorrências de necessidade como o rompimento de uma barragem em Minas Gerais. Mas, há 20 anos, não era assim.
“Não tínhamos treinamento para atuar em ocorrências de furacão. Fomos na raça, nos preocupamos em ajudar as pessoas. Hoje é bem diferente. As equipes dos bombeiros são especializadas, possuem muitos cursos, equipamentos avançados e estariam mais equipados e preparados para atender um novo furacão, caso aconteça”, observa Ausenir.
O comandante do 4º BBM afirma que após o furacão ficaram lições e muito aprendizado, principalmente sobre tomadas de decisões. “Começamos a nos estruturar, temos muitos cursos sobre fenômenos naturais, equipes especializadas. Depois do furacão, começamos a evoluir nesses eventos climáticos”, garante.
‘Nunca vi algo parecido em toda a minha vida’
A noite do dia 27 de março de 2004 nunca saiu da memória de João Batista, de 62 anos. Morador de Passo de Torres, ele teve a casa destruída pelo furacão Catarina e precisou reconstruir sua vida. Ele e o filho João Olivio, que na época tinha 6 anos, se abrigaram no banheiro para se proteger da força do vento e da chuva.
“Meu filho de 6 anos estava comigo, estávamos apenas os dois em casa. Recordo que liguei a televisão, estavam falando para se preparar que estava chegando o Catarina, porém não liguei muito, mas por volta das 22h30 começou o vento. Tínhamos duas casas e mais a residência do meu irmão, todas bem próximas, e algumas áreas foram destruídas e, outras, não. Minha casa era seminova e destruiu tudo. Uma parte era de alvenaria, sendo o banheiro e cozinha e o resto de madeira”, recordou o idoso.
Casas inteiras foram praticamente varridas do mapa no sul do estado. (foto:Frederico Rudorff/Divulgação)
Batista era proprietário de duas casas, sendo uma destruída pelo furacão. A segunda foi atingida e precisou de reparos. Na do irmão, que no momento do Catarina estava em viagem em Florianópolis, não houve problemas. "Nós nos abrigamos no banheiro, eu e meu filho. Não tínhamos para onde correr. Foi algo tão espantoso, nunca vi algo parecido em toda a minha vida. Nunca vi um vento tão forte. Os pés de abacates foram arrancados. O que mais me chamou atenção é que o vento arrancou um pé de taquara, nunca vi isso acontecer”, lembrou.
Para conseguir reconstruir sua casa, Batista precisou de ajuda. “Na época, eu trabalhava no Conselho Tutelar e a Prefeitura de Passo de Torres me ajudou. Fui ajudado por muita gente para reconstruir minha casa, pois fiquei na rua”, lamentou.
E o medo?
Ao ser questionado se acredita que possa acontecer um novo furacão, Batista foi enfático. “Espero não ver mais aquilo, pois foi apavorante. Até hoje não sei onde foram parar minha caixa d’água, telhas e parte da minha casa, tudo foi derrubado e sumiu”, frisou. “Era um vento forte e passava água salgada com o vento. Cada rajada de vento levava um pedaço da casa”, acrescentou.
Histórias comuns em um momento de tragédia
Assim como João Batista, o morador de Passo de Torres, Isael Lessa Silveira, de 57 anos, ainda tem na memória os momentos de tensão que passou durante o Furacão Catarina. Morador do Centro, ele teve a casa destruída pelos fortes ventos e precisou de ajuda de familiares para reconstruir o imóvel e também a sua vida.
Atualmente, Silveira é secretário municipal de Pesca em Passo de Torres e conta que receberam informações sobre os fortes ventos, porém não imaginava que teria a dimensão que teve. Além disso, na época, também atuava como pescador e estava acostumado com rajadas de vento, mas não naquela proporção.
Silveira lembra que por volta das 22 horas de sábado, o vento estava forte, mas não na magnitude que ficaria horas depois.
O morador de Passo de Torres conta que possui um restaurante de pescados na cidade e estava no local na época. “O vento começou devagar e foi despertando até chegar as rajadas mais fortes. Como eu estava no meu estabelecimento com um amigo, acabamos ficando presos no local, pois o vento era muito forte. Na época, achei que a força do vento destruiria meu restaurante, mas não aconteceu. Quando parou por alguns instantes, deixamos o estabelecimento para irmos para nossa casa. Saímos de carro, entretanto, as rajadas voltaram e eram tão fortes que parecia que o veículo ia virar. Estacionamos o carro e nos escondemos atrás de um muro de pedra”, recorda.
Ao tentar se esconder, Silveira ressalta que presenciou de perto a força do vento. “Era algo que nunca tínhamos visto. Percebemos os objetos voando, era assustador e parecia que o vento ia levar toda a cidade consigo. O que mais chamava atenção é que aliviava por alguns segundos e minutos e depois vinha com força novamente e levava tudo que via pela frente”, afirma.
Depois de algum tempo escondido atrás de um muro de pedra, Silveira e o amigo retornaram ao seu restaurante. “No local, nós sentíamos o vento, ouvíamos um barulho insuportável, era apavorante. Saímos do meu estabelecimento por volta das 3 horas e já víamos a destruição na cidade. Na casa do meu amigo, nada aconteceu. Mas a minha residência estava destruída”, relembra.
Após furacão, a vida precisou continuar
O Furacão Catarina não afetou apenas as famílias de João Batista e Isael Lessa Silveira, mas, sim, de centenas de pessoas. Ao longo do amanhecer de domingo, o rastro de destruição deixado pelos fortes ventos e pela chuva foram vistos com mais clareza pelos moradores, assim como a dimensão do que havia sido realmente o furacão.
“É como qualquer tragédia, não esperávamos, você não pensa muito, tem que batalhar para fazer tudo de novo, com condições ou sem, tínhamos que nos recuperar. Fomos reconstruindo devagar”, destaca.
A destruição das casas foi marcante, claro, porém o medo de ver e viver novamente um furacão trouxe aflição para Silveira. Os fortes ventos presenciados naquele 27 de março nunca saíram da sua memória. Hoje, ele acredita que um novo furacão pode ocorrer novamente e afirma que o clima está mudando todos os dias.
Madrugada traumática
Duas décadas não foram suficientes para que o terror produzido pelo Furacão Catarina se tornasse apenas uma história na memória de milhares de catarinenses. Para muitas pessoas, a experiência traumática vivida naquela noite de sábado e madrugada de domingo segue produzindo efeitos 20 anos depois. Uma dessas pessoas é o engenheiro araranguaense Rui César Pereira Ferreira, de 67 anos.
Ele morava em uma casa no bairro Jardim das Avenidas e naquele dia resolveu deixar o local e se abrigar na casa dos sogros. A decisão foi fácil, sobretudo pela crença nos boletins emitidos pelo comunicador Ronaldo Coutinho, que foi o primeiro a alertar sobre a formação do Catarina.
“Ele foi bem incisivo e decidido. Ele disse que o furacão ia acontecer. Uma hora ele chegou a dizer que o Catarina não se afastou um milímetro da rota traçada pelos modelos e eu fiquei apavorado. Acreditei e falei com a Suzana para a gente não ficar na nossa casa, que era em um local alto, aberto e era uma casa de madeira com telha de Brasilit. A gente resolveu ir para a casa do meu sogro que era mais protegida e eu acreditei que lá o problema, o prejuízo ou o estrago fosse menor”, recorda.
Com a decisão tomada, o casal reuniu os filhos Stephanie e Ruan, na época com 11 e 4 anos, e partiu em direção ao bairro Alto Feliz para se abrigar na casa de Domingos Manoel Barbosa e Salete Vieira Barbosa. Foi lá que a noite ganhou contornos traumáticos para Ferreira. Era por volta das 22h30 quando o vento ganhou força e deu a primeira amostra do que aconteceria mais tarde. Enquanto os familiares dormiam, Ferreira e o sogro simplesmente se olhavam, sem reação.
“Estávamos acordados um olhando para o outro e assistindo aquele sobe e desce de telha, aquela barulheira, aquela fúria do vento que era uma coisa nunca vista. Felizmente na casa que a gente estava não aconteceu nada. Aí deu um intervalo, o vento deu uma parada e a gente resolveu ir lá em casa ver o que tinha acontecido”, explica.
Cenário de guerra
A distância era de cerca de 2 quilômetros. Pelo caminho, o cenário de guerra marcou a vida de Ferreira, que foi ainda mais impactada ao chegar em casa e encontrar um lado completamente destelhado, móveis e roupas enxarcados pela água da chuva, tudo em meio a uma escuridão absurda causada pela falta de energia elétrica.
“Estávamos vendo árvores caídas, telhas para tudo que era lugar e sem luz. Uma coisa assustadora que já passou 20 anos, mas a gente tem aquela lembrança viva do estrago que foi feito em toda a cidade e principalmente nas casas mais simples com estrutura menor”, relata.
Foi com este cenário que o engenheiro retornou para a casa do sogro. Logo depois, com o fim da passagem do olho do furacão e a chegada da segunda borda, o pânico foi ainda maior. O vento mais violento causava sensação de impotência diante da revolta da natureza. A única alternativa foi acompanhar acordado a passagem do Catarina e rezar para que a casa não sucumbisse ao vento.
“O segundo tempo do vento foi ainda mais violento. E aí foi aquela reza para pedir a Deus proteção para a gente e para a família, para as crianças. Mas era muito sério e não dava trégua. Quando terminou eu não voltei lá para ver o que tinha acontecido, já estava cansado porque foram horas e horas de tensão e agonia. No outro dia que a gente foi ver que não tinha ficado nenhuma telha em cima da casa e os móveis a gente perdeu tudo. Era uma situação horrível”, lamenta. “Eu fiquei bem triste. Ainda fui limpar a casa. As roupas e móveis pingavam água. Foi horrível, mas o Rui foi bem. Eu lembro bem dele, achei ele muito inteligente porque parece que ele calculou a velocidade do vento. Ele calculou desde o começo”, complementa Suzana, que dormiu agarrada nos filhos com a intenção de protegê-los em caso de acidentes.
20 anos depois, Rui e Suzana relembram o marcante final de março de 2004. (Foto: Stephanie Barbosa Lemos/Divulgação)
Um milagre
Ferreira recorda ter tido prejuízo em cerca de R$ 5 mil. Valores consideráveis tratando de 20 anos atrás. Apesar dos danos materiais, ele considera um acerto ter deixado a casa no Jardim das Avenidas, já que a decisão poupou a família de consequências piores. E avalia como um milagre a casa de madeira dos sogros não ter sofrido avaria ao longo da madrugada.
“Eu considero um milagre não ter acontecido nada. Estávamos de prontidão caso acontecesse qualquer coisa. O som era ensurdecedor. Na casa dele eram telhas daquelas fininhas, telhas de quatro milímetros. E assim, uma pregação que não estava 100%. A telha ia e voltava. Era como se fosse uma britadeira. A gente estava dentro de uma britadeira. Aquilo chacoalhava mesmo”, lembra.
“Ciclone é uma palavra que me complica muito”
Desde o Catarina, a preocupação de Ferreira quando a meteorologia indica a atuação de ciclones próximo à costa catarinense tem sido sobrecarregada com memórias daquele final de março de 2004. Ainda que inconsciente, o medo vivido 20 anos atrás reflete quando a previsão indica tempestades. Atualmente ele vive com a esposa em uma casa em Balneário Arroio do Silva e já conviveu com ventos que ultrapassaram os 100 km/h. Porém, o imóvel projetado por ele ganhou vigas reforçadas, laje no quarto do casal e toda a estrutura para se proteger de um novo furacão. Mesmo assim, o engenheiro não tem dúvidas de que se o fenômeno se repetir, buscará abrigo em um local distante dali.
“Eu não tinha problema com vento. Nunca tive. A partir dali qualquer prenúncio de vento eu mudo o astral, mudo o humor. Ciclone é uma palavra que me complica muito. Eu fico já naquela preocupação e não consigo dormir. Hoje eu tenho uma casa melhor. Já fui testado com vento a 80 km/h, 90 km/h e não aconteceu nada. Mas na hora desse 80, 90 km/h o meu estado emocional é complicado, porque daí é como se aquele furacão estivesse acontecendo naquele momento. É uma coisa muito séria mesmo”, afirma.
Volta por cima
Um dia após a destruição do Catarina, Ferreira recebeu a notícia que havia sido aprovado em primeiro lugar no concurso do Besc (Banco do Estado de Santa Catarina). Foi então que conseguiu se restabelecer e conquistar com mais facilidade o que o Catarina levou. Desde então, manteve a vida como concurseiro. Depois do Besc, passou pela Prefeitura de Criciúma, Previdência Social e Caixa Econômica Federal, onde se aposentou em 2017. Mesmo após a aposentadoria, passou em um processo seletivo para atuar no Presídio Regional de Araranguá e ali ganha a vida há quase dois anos.
Um casamento inesquecível
Charles e Cleimar trocaram as alianças no dia 27 de março de 2004. (Fotos: Lucas Renan Domingos/Portal Engeplus)
Foram seis meses desde o início do namoro até o casamento entre o jornalista Charles Souza e a auxiliar administrativa Cleimar da Silva Casagrande de Sousa. A data escolhida para selar matrimônio? O sábado do dia 27 de março de 2004, no Parque Ecológico de Maracajá, no Extremo Sul de Santa Catarina, a região mais afetada pelo Furacão Catarina.
“A Cleimar sempre disse que queria ter um casamento inesquecível. E ela teve. Não tem como a gente não lembrar todos os anos deste momento”, brinca Souza. Foram três meses de preparação para o momento. Trajes prontos, espaço para a festa reservado, fotógrafos, garçons, músicos e buffet contratados. “Nós começamos a ter notícias do furacão somente na semana do casamento. A gente ouvia algumas notícias, mas ninguém acreditava. E não tinha nem como a gente pensar em cancelar, já estava tudo pronto”, recorda o jornalista.
Até que chegou o sábado. E por mais que tudo tenha sido detalhadamente preparado pelo casal para receber quase 300 convidados, nem tudo saiu como o planejado. O fim do dia já dava sinais de que algo estranho estava se aproximando. O noivo notava um céu diferente, pintado em tons de laranja e, ao mesmo tempo, escuro. As primeiras notícias começavam a veicular na imprensa, mas, na correria do dia do casamento, o casal pouco pôde acompanhar.
“A gente foi notar mesmo que já tinha alguns sinais do temporal somente depois na gravação do casamento. As imagens da cerimônia mostram um vento mais intenso, o meu véu mexendo”, descreve Cleimar. Porém, nada que abalasse o dia especial do casal.
Depois da valsa, a festa acabou
Feita a cerimônia, alianças trocadas e os noivos liberados para dar o beijo para selar o casamento. Durante a janta, tudo também transcorreu conforme o combinado, apesar do tempo com vento e chuva. Em meio ao jantar, os noivos notavam a falta de alguns convidados. Eram alguns parentes e amigos que, mais atentos às notícias, ficaram com medo e desistiram de comparecer ao casamento.
“Muitas pessoas não foram. Tinha parente daqui da região e também de fora, do Rio Grande do Sul, do Paraná. Muitos estavam no caminho e interromperam a viagem com medo”, conta Souza. Os que compareceram, comemoraram na cerimônia, aproveitaram o jantar e só não curtiram o baile, porque no auge do casamento veio também o ápice do furacão.
Depois da valsa, o músico tocou a primeira música para a dança dos noivos, mas faltou energia. Foram aproximadamente 15 minutos de espera até que novamente a festa seria retomada e, mais uma vez, o apagão. Nesse meio-tempo não foram poucos os convidados a irem embora com receio do que estava por vir. Entre eles, Antenor Rocha, prefeito de Maracajá à época.
“O prefeito tinha saído com a Defesa Civil para ver a situação no município. Depois de aproximadamente uma hora, ele retornou e falou para eu não deixar mais ninguém sair do local da festa. A situação estava perigosa. Árvores caídas, placas e telhas voando”, diz Souza. Era o Furacão Catarina, mostrando a sua força.
Madrugada de medo
À luz de velas, quem ficou no salão de festas teve que esperar a passagem da tempestade por ali mesmo. Mulheres recolheram as cadeiras e foram se abrigar em um dos banheiros, por considerarem o ambiente mais seguro. Os homens seguiram conversando enquanto acompanhavam pelas janelas do local a progressão da força dos ventos.
“Nós encostamos os freezers nas portas onde o vento era mais forte. Uns biólogos estavam acampados no meio da mata do Parque Ecológico. Com a força do vento, eles perderam tudo. Voaram as barracas deles e eles foram se abrigar no camarim do salão onde a gente estava”, relembra Souza.
Depois de um tempo, os ventos acalmaram. “A gente acredita que foi o momento do olho do furacão”, explica. “E daí quando voltou a ventar, lá pelas 2 horas da madrugada, o vento virou na direção da outra porta do salão. Eu, meu sogro, meus cunhados começamos a segurar esta porta. Até a Cleimar veio ajudar. Eu lembro que a água da chuva passava pela fresta da porta e entrava pela manga da minha camisa. O vestido da minha esposa também molhou tudo”, detalha o jornalista.
Vendo que os ventos eram fortes demais, eles empilharam cadeiras e colocaram nas portas, antes de também se abrigarem no banheiro. Por lá ficaram até o amanhecer, por volta das 6 horas. “Quando retornamos para o salão, vimos a força do vento, que arrebentou a porta. Mesas e presentes espalhados por todas as partes e molhados".
Do lado de fora, árvores quebradas. A ponte do Parque Ecológico de Maracajá foi arrancada. Estruturas danificadas. “A gente não conseguiu nem fazer todas as fotos que a gente queria. Fizemos fotos internas, no estúdio que o fotógrafo montou. Mas íamos fazer fotos na ponte e não deu. Inclusive, o fotógrafo foi um dos primeiros a ir embora”, afirma Cleimar.
Casal passou a madrugada inteira se protegendo no interior do salão onde a festa aconteceria.
Sem lua de mel
Da parte que sobrou do bolo, eles ainda tomaram café pela manhã, com direito a sobremesa. E depois todos os convidados puderam, enfim, ir embora. O casal também precisou mudar os planos. A lua de mel ficou para outro momento.
“Não tinha nem como a gente ir para algum lugar. A gente estava com a roupa toda molhada. O vestido dela sujo de lama. No fim das contas, ela foi embora com meus pais e eu fiquei lá ajeitando as coisas do casamento que o vento tinha estragado”, conta o jornalista.
À época o episódio deixou a noiva com leve chateação. “Planejamos para que tudo acontecesse do início ao fim. Por conta do furacão, a programação foi interrompida na metade. Ficamos mais chateados por não conseguir executar totalmente o que planejamos. Porém, a parte mais importante, que é a cerimônia, onde nós firmamos o nosso compromisso um com o outro foi perfeito, lindo. E conseguimos fazer a janta também, ficou faltando apenas o festejo”, analisa Cleimar.
Temporal em casamento na família, também não era novidade. “No casamento dos meus pais foi igual. Deu um temporal. O vento derrubou mesas, barracas. Ninguém conseguia ir embora, porque era uma área de morro e o pessoal não conseguia sair, porque era liso. Tiveram que passar a noite também”, menciona a auxiliar administrativa.
Desejo de completar o casamento
Completando os 20 anos de casados no mesmo dia em que duas décadas depois as memórias do Furacão Catarina ainda seguem vivas, o casal ainda tem mais a comemorar do que lamentar. Hoje são pais de duas filhas. A Isabela, de 15 anos, e a Alice, de seis anos.
“Inclusive, a filha mais velha, a gente chegou a cogitar a colocar o nome da Catarina. Só que optamos por não levar a ideia pra frente. Apesar de não acontecer nada grave no nosso casamento, nem com a gente e nem com os nossos convidados, foi um episódio triste para muitas pessoas”, justifica Souza.
Os dois alimentam a intenção de, algum dia, reunir os convidados para realizar a festa que não aconteceu. Ainda não confirmaram se vão colocar a proposta em prática, mas fazem planos. “Quem sabe na comemoração de uma boda, talvez nos 25 anos. É uma data muito marcante para nós o nosso casamento, por conta de tudo que aconteceu. É claro que não vai dar de reunir todos, acabamos perdendo amigos, familiares e outros convidados a gente perdeu contatos, mas temos sim a intenção de reunir boa parte deles”, finaliza o jornalista.
Charles e Cleimar com as filhas Isabela (esquerda) e Alice (direita).
Fauna e flora comprometidos
Os impactos das rajadas de ventos de mais de 180 km/h foram sentidos pela natureza, antes e depois do Furacão Catarina chegar até a costa catarinense. Em contato com a população durante o levantamento dos estragos da tempestade, a Defesa Civil recebeu relatos de mudanças no comportamento de animais.
A fauna foi seriamente impactada, especialmente os pássaros. Aves litorâneas foram parar nos vales e encostas da Serra Geral, a uma distância de 40 quilômetros. Foi grande o número de aves mortas e doentes, com viroses e má alimentação, por não conseguirem voltar ao seu habitat natural. Outras morreram atingidas por objetos lançados pela força do vento ou com colisões em árvores e edificações. Nos primeiros dias após a tempestade, pássaros comuns sumiram da região.
Aves costeiras foram parar na região serrana. (Foto: Divulgação)
Depois da passagem do furacão, mosquitos se tornaram mais agressivos. Na praia, foram observadas mortes de tatuíras. Chamou a atenção no interior as atitudes de bovinos. Vacas mugiram intensamente uma hora antes da chegada dos ventos. No município de Jacinto Machado, houve relatos do gado se deslocando sozinho para cocheiras para buscar proteção. Somente depois do furacão cessar, os animais voltaram para o pasto.
“Quando falamos em sensibilidade para mudanças ambientais, podemos dizer que existem alguns grupos de animais mais sensíveis que outros. Os sapos, por exemplo, são mestres em prever a chuva. Eles conseguem sentir isso até dois dias antes, por ter sensibilidade para alteração de temperatura, umidade. O mesmo acontece com os pássaros em relação aos ventos e tempestades. Os macacos também sentem alteração de pressão”, enumera Fernando Carvalho, biólogo doutor em zoologia e professor da disciplina Ciências Biológicas da Unesc.
Carvalho lembra que houve relatos de mudança de comportamento de animais em outros desastres meteorológicos. “É o caso de tsunamis. Tiveram relatos de pessoas afirmando que viram elefantes e outras espécies se deslocando em resposta ao fenômeno. Esta sensibilidade é um instinto de algumas espécies e geralmente está mais voltada para a defesa, para que não sejam pegos de surpresa, por exemplo, quando estão saindo para se alimentar”, explica.
Trabalhando em pesquisas sobre o comportamento de morcegos, por exemplo, o biólogo conta que foi possível notar sinais de mudança de ações da espécie conforme alterações do clima. “Estamos ainda fazendo esses estudos, mas alguns dados nos mostraram que em dias de tempestades, a taxa de captura dessas espécies diminui”, afirma.
Já Mainara Cascaes, bióloga doutora em Ciências Ambientais e coordenadora do curso de Ciências Biológicas da Unesc, possui experiência em estudos com invertebrados, onde se encaixam os mosquitos. Ela confirma que eventos climáticos alteram o comportamento da espécie.
“Os insetos são bem sensíveis às mudanças de temperatura, vento, pluviosidade e pressão atmosférica. Toda essa mudança influencia diretamente o voo deles. Quando chove, há uma mudança também na pressão atmosférica, isso faz com que os insetos comecem a voar mais baixo, por exemplo, para não serem atingidos tanto pela mudança de pressão, de temperatura ou de pluviosidade”, relata.
Mainara diz não conhecer estudos sobre a mudança de comportamento dos insetos durante o Furacão Catarina, mas não descarta a possibilidade de que o fenômeno climático possa ter impactado nas ações da espécie. Uma hipótese que pode ser relacionada com a tempestade é a necessidade de reprodução dos mosquitos.
“Se a gente for pensar, por conta dos fortes ventos, muitos ovos e mosquitos devem ter sido dizimados. Quando há uma baixa em uma população, naturalmente a espécie vai procurar se reproduzir e isso faz ter um crescimento no número de mosquitos. Com relação à agressividade, se as pessoas relataram isso relacionado às picadas, pode ter também relação à estratégia reprodutiva mesmo. As fêmeas precisariam consumir mais proteína, que elas encontram no sangue, para elas poderem aumentar suas taxas de fertilidade”, analisa a coordenadora.
Carvalho ressalta que a sensibilidade dos bichos faz parte do comportamento natural de algumas espécies e que os relatos servem para que o ser humano possa entender melhor o ambiente e como os animais se utilizam disso.
"É claro que em alguns momentos essas ações nos ajudam a entender melhor cada espécie quando se faz um estudo. Agora se tratando de características climáticas adversas, os equipamentos tecnológicos são muito mais precisos e conseguem prever muito melhor alguma alteração", finaliza.
Árvores de 40 metros tombadas
A flora teve grandes danos. Em todos os cenários de classificação da intensidade dos estragos, indo de baixa até muito alta, a Defesa Civil documentou cenários de prejuízos em árvores. Houve registro de espécies robustas, de mais de 40 metros de altura, tombadas inteiras. Algumas foram desgalhadas e quebradas. Folhas da cobertura das árvores ficaram secas por conta da elevada salinidade e presença de areia na água da chuva, segundo afirmaram moradores e autoridades.
A pressão produzida pelos ventos fez estragos em eucaliptos, que em vez de serem arrancados, como ocorre normalmente, foram quebrados ao meio. Para que isso ocorra, há estudos que apontam que, por conta da flexibilidade da espécie, seriam necessárias rajadas de 200 km/h. Foi observado, ainda na eucaliptocultura, um cenário conhecido como “paliteiro”, quando os galhos das árvores são arrancados, restando apenas o tronco.
Estragos e benefícios
A mata nativa foi mais resistente do que os eucaliptos. Uma amostra dos impactos neste tipo de vegetação é o estudo realizado pelos pesquisadores do Herbário Pe. Dr. Raulino Reitz, vinculado à Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Em meses anteriores a chegada do temporal, eles faziam um levantamento sobre a Floresta Ombrófila Mista Altomontana, localizada no Parque Nacional Aparados da Serra, entre o Extremo Sul de Santa Catarina e o Nordeste do Rio Grande do Sul.
Os dados foram coletados entre os meses de março e abril de 2004, ou seja, antes e após a passagem do Furacão Catarina. Com isso foi possível fazer uma comparação de como estava e de como ficou o ecossistema pesquisado.
“O Furacão Catarina foi um fenômeno climático sem precedentes. Atingiu o Sul do Brasil com força total, marcando a história e paisagem do Parque Nacional Aparados da Serra”, enfatiza o biólogo e professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e curador do Herbário Pe. Dr. Raulino Reitz da Unesc, Guilherme Elias.
As pesquisas estimaram que os ventos violentos derrubaram 5% das árvores do ambiente onde ocorreram os estudos. “Quando a pesquisa começou, a gente não imaginava que ocorreria um furacão. Depois de um tempo estudando a vegetação, aconteceu o fenômeno. E depois que tudo normalizou a gente percebeu que no local onde a gente estava tinha vários indivíduos arbóreos caídos. Foram impactos significantes”, lembra.
Algumas espécies de vegetação desapareceram após o episódio que ficou marcado na região Sul do país. A altura média das espécies nativas danificadas foi de oito metros de altura, podendo alcançar os 11 metros.
Pesquisadores registraram estragos na natureza no dia seguinte ao Catarina. (Foto: Divulgação)
Por outro lado, a ocorrência do Furacão Catarina deu início a um surpreendente processo de transformação na Floresta Ombrófila Mista Altomontana, refúgio de imponentes araucárias e uma vasta gama de espécies vegetais.
“Em meio à destruição, a natureza demonstrou sua incrível capacidade de recuperação. As clareiras formadas pela queda das árvores permitiram que a luz do sol alcançasse o solo da floresta, estimulando o crescimento de novas plantas e a regeneração do ecossistema”, pontua o pesquisador.
A importância dos processos naturais
Mesmo com o poder destrutivo, este tipo de fenômeno natural ressalta a importância de eventos de distúrbio, como furacões, na dinâmica das florestas. “O estudo do impacto do Furacão Catarina na Floresta de Aparados da Serra nos oferece importantes lições sobre a relação entre seres humanos e o meio ambiente. Ele nos lembra da necessidade de preservar nossas áreas naturais, não apenas por sua beleza ou biodiversidade, mas também por sua capacidade de se adaptar e se recuperar de eventos extremos, que tendem a se tornar mais frequentes e intensos devido às mudanças climáticas”, frisa.
Para o biólogo doutor em Ciências Ambientais, ao cuidarmos de nossas florestas, garantimos não apenas a preservação de um patrimônio natural único, mas também apoiamos a capacidade da natureza de enfrentar os desafios climáticos futuros.
À medida que avançamos, é fundamental que continuemos a aprender com eventos como o Furacão Catarina, adaptando nossas práticas de conservação para apoiar a resiliência dos ecossistemas naturais. Assim, podemos assegurar que as florestas de nossa região continuem a se regenerar, oferecendo refúgio para a biodiversidade e inspiração para as gerações futuras.
Guilherme Elias, biólogo doutor em Ciências Ambientais
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Prejuízos milionários no campo
Além das destruições na infraestrutura e danos na fauna e na flora, o setor agrícola também foi um dos principais alvos de destruição do Furacão Catarina. Entre os dias 27 e 28 de março de 2004, diversos produtores dos municípios da Associação dos Municípios do Extremo Sul Catarinense (Amesc) e da Associação dos Municípios da Região Carbonífera (Amrec) sofreram prejuízos econômicos, já que viram suas plantações serem parcialmente, e em muitos casos, totalmente destruídas pelas rajadas de ventos que atingiram velocidade de 180 km/h por volta das 2h48.
Em geral, Araranguá, Balneário Arroio do Silva, Sombrio, Balneário Gaivota, Santa Rosa do Sul, São João do Sul e Passo de Torres foram as cidades do Sul do Estado que mais registraram danos. Segundo os dados dos relatórios de Avaliação de Danos (Avadans) da Defesa Civil, homologados pelo Decreto Estadual n° 1.691 de 26 de abril de 2004, ao todo, os prejuízos chegaram a cerca de 2 a 37 milhões de reais por município. Isso totaliza uma perda de R$ 211 milhões.
Com a passagem do ciclone tropical no estado catarinense, a intensidades dos danos foram classificadas pela Defesa Civil em uma avaliação realizada no dia 28 de março de 2004. Os prejuízos do fenômeno climático foram divididos em quatro classes: muito alto, alto, médio e baixo. Em todas as classes criadas, o setor agrícola demonstrou danos em Santa Catarina. Por exemplo, na classe ‘muito alta’ os produtores tiveram perdas totais.
Amesc: mais de R$ 68 milhões em danos na agricultura
A reportagem do Portal Engeplus entrou em contato com a Gerência Regional da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) da Amesc e Amrec, e conseguiu os dados das principais culturas afetadas na região da Amesc durante a passagem do Catarina. Na época, um relatório foi produzido pela Gerência Regional da Epagri de Araranguá e constatou que, ao todo, houve uma perda de R$ 68.955.246,00 em danos no setor agrícola nos 15 municípios. As principais culturas afetadas foram: arroz irrigado, milho e banana.
O arroz irrigado, que era plantado em uma área de 49.300 hectares, mostrou a maior perda aos agricultores. A cultura teve uma área de 31.125 hectares atingidos (18,3% da plantação), registrando uma perda de mais de R$ 26 milhões. Os bananais também registraram grandes prejuízos. A cultura era plantada em uma área de 5.985 hectares e teve 5.705 hectares atingidos (70% da plantação), registrando perda de mais de R$ 12 milhões aos agricultores. O milho, que tinha uma área plantada de 7.982 hectares, foi a terceira mais afetada. Os milharais tiveram uma área de 7.538 hectares atingidos (90% da plantação), somando perdas de mais de R$ 11 milhões no setor agrícola.
De acordo com o doutor em Ciências Biológicas, Cláudio Ricken, as culturas de arroz, milho e banana foram as mais afetadas por conta do tombamento dos pés das plantações. “Devido à maneira como essas culturas são plantadas na natureza, elas acabam sofrendo mais por estarem mais expostas às fortes rajadas de vento. Principalmente com as que foram registradas durante a passagem do ciclone tropical”, explica.
Por meio do relatório, a Epagri informa que além das culturas de plantações afetadas, as estruturas das áreas rurais também sofreram prejuízos de mais de R$ 13 milhões com o impacto das rajadas de vento. As principais estruturas danificadas foram as estufas, onde cerca de 693 estruturas ficaram totalmente destruídas na região. Os danos a essas construções registraram um prejuízo de mais de R$ 5 milhões aos agricultores.
O doutor em Ciências Biológicas lembra que muitos locais ficaram sem energia elétrica e, dessa forma, foram comprometidos os produtos que eram armazenados nos frigoríficos. Dentro dos 15 municípios da Amesc, os produtores de Turvo, Araranguá e Timbé do Sul foram os mais impactados. “Esses municípios foram os mais afetados por conta do trajeto do Furacão Catarina. Já nas outras localidades foram maiores os prejuízos nas áreas urbanas, inclusive com a queda de casas”, pontua o biólogo.
Com base nos relatórios da Epagri, Turvo registrou danos nas culturas de arroz irrigado, milho, feijão e na área de reflorestamento. O município também registrou 70 estufas caídas, que provocou um prejuízo de R$ 315 mil, a destruição parcial de uma unidade de beneficiamento de semente de arroz com prejuízo de R$ 100 mil, e cinco secadores de arroz danificados mostrando um prejuízo também de R$ 100 mil, além de um prejuízo de R$ 280 mil nos galpões de fumo e arroz.
Araranguá teve prejuízos nas culturas de arroz irrigado, milho, feijão, mandioca e fumo. Além disso, o município também registrou um prejuízo de R$ 1,8 milhão de perdas parciais e totais em 600 estufas de fumo e um prejuízo de R$ 2,3 milhões em danos nos galpões, paióis e silos, já que 950 unidades foram atingidas pelos ventos.
Já o município de Timbé do Sul apresentou danos nas culturas de arroz irrigado, milho, feijão, moranga, reflorestamento de eucalipto e reflorestamento de pínus. Durante a passagem do Furacão Catarina, os produtores tiveram uma perda de 100% das plantações de milho, sendo a cultura mais afetada.
Em Balneário Arroio do Silva, os principais prejuízos agrícolas ocasionados pela passagem do Furacão Catarina foram nas culturas de milho e hortifruticultas. Porém, os danos foram reduzidos, como apontam os dados do Atlas de Desastres Naturais do Estado de Santa Catarina, que foi elaborado pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc).
Mesmo o arroz sendo a cultura mais afetada na passagem do ciclone tropical na região da Amesc, em Balneário Arroio do Silva os produtores tiveram perdas minimizadas, principalmente por já colherem a safra antes da passagem do fenômeno climático. A estimativa de dano foi de cerca de 38% aos agricultores. Além do arroz, os bananais também foram atingidos em Santa Catarina, porém, mostrando resistência no município. Os plantios estavam em morros grandes, não sendo atingidos pelas rajadas de ventos fortes, com perdas em torno de 14%.
Produtores de bananas tiveram grandes perdas com a passagem do ciclone tropical. (Foto: Divulgação/Epagri)
Banana: uma das culturas mais prejudicadas
Os prejuízos às plantações de banana não ficaram isolados apenas nas regiões da Amesc, já que na Amrec os bananais foram um dos principais alvos da força do Catarina. Os municípios mais afetados foram Siderópolis, Criciúma, Treviso e Urussanga, por serem os principais produtores da cultura na região. Mais de 300 famílias, que tiravam todo seu sustento das produções de banana, sofreram prejuízos.
Assim como na Amesc, os levantamentos de dados dos danos ocasionados aos bananais foram efetuados pelos escritórios municipais da Epagri, entre os dias 29 e 30 de março de 2004. Na época, a empresa visitou os bananicultores e também realizou reuniões com as duas principais associações de produtores: Associação dos Bananicultores de Treviso, Urussanga e Siderópolis (Abacatur) e Associação dos Bananicultores de Criciúma (Abacri).
Siderópolis perdeu cerca de 60% das plantações de banana com a passagem do Furacão Catarina. (Foto: Divulgação/Epagri)
Além disso, os dados do relatório mostraram que os produtores ainda estavam se recuperando das perdas causadas por duas geadas que foram registradas em julho de 2000 e pela estiagem iniciada em maio de 2003, que foram prejuízos somados com a passagem do Furacão Catarina. De acordo com a Epagri, ao todo, a destruição dos plantios registrou uma perda de R$ 4,8 milhões aos produtores. O município de Siderópolis foi o mais afetado, perdendo 60% das plantações e mostrando uma perda de R$ 2.430.000,00.
As atividades de recuperação do plantio iniciaram logo após a passagem do Catarina. A Epagri relata que os produtores levaram cerca de quase dois anos para verem os pomares produzirem frutos novamente. A primeira colheita de cachos dos bananais, após a passagem do ciclone tropical, foi realizada apenas em janeiro de 2006.
Rastros incomuns nas plantações de arroz
Durante o monitoramento dos danos do Furacão Catarina, especialistas e pesquisadores encontraram situações incomuns nos rastros deixados pelo ciclone tropical nas plantações de arroz. Parte dos arrozais ficaram com marcas lineares e circulares. A observação feita pelos pesquisadores da Ufsc apontam que os rastros lineares foram produzidos por fortes rajadas de vento e os circulares por pequenos vórtices.
O coordenador de Monitoramento e Alerta da Secretaria de Estado da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina, Frederico Rudorff, foi um dos pesquisadores que fizeram parte da análise desses rastros. Uma das teorias é que os vórtices foram formados por pequenos tornados.
“Não sabemos se foram os tornados que deixaram um certo rastro ali nas plantações de arroz ou se eram apenas turbulências de vento. Mas, a gente viu muito essas marcas em plantações de arroz, que lembravam como se fosse um pequeno tornado ali nessas plantações. Entretanto, não é uma coisa que a gente confirmou 100%. Porém, pode ter ocorrido, com certeza, já que não é incomum ter tornados associados aos furacões”, analisa Rudorff.
Registro dos arrozais à esquerda em formato linear e à direita em formato circular. (Foto: Divulgação/UFSC)
Novas tecnologias de plantio
Ricken informa que após a passagem do Furacão Catarina os avanços tecnológicos começaram a contribuir, cada vez mais, para facilitar os métodos de plantio aos agricultores. Uma das técnicas citadas pelo doutor em Ciências Ambientais foi a existência de mudas clonadas que facilitaram a produção de bananas e eucaliptos, que foram culturas que sofreram com o tombamento dos pés na época do fenômeno em Santa Catarina.
“Na época que este fenômeno ocorreu não teria como reduzir os danos que foram ocasionados, principalmente devido à dimensão e força dos ventos. Além disso, a precaução foi tomada com o aviso dias antes do evento, mas diversas pessoas não acreditaram. Atualmente, temos a tecnologia ao nosso favor, mas, mesmo com essas novas formas de plantio, diversas culturas ainda são suscetíveis a sofrerem danos com a passagem de eventos climáticos como este”, conclui o biólogo.
Bananais levaram cerca de dois anos para produzirem frutos novamente. (Foto: Divulgação/Epagri)
‘O furacão Catarina foi um divisor de águas para a construção civil’
Muitas residências foram destruídas com os fortes ventos e chuva do furacão Catarina, e na reconstrução desses imóveis foi necessário repensar a construção civil. O presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon), Alessandro Giusepe Pavei, conta que o furacão foi um divisor de águas para as obras no Sul de Santa Catarina.
“O furacão como o Catarina e outros vendavais que acontecem praticamente quase todo verão, são eventos pontuais e as obras não sofrem com o impacto atualmente. Mas, o furacão Catarina foi um divisor de águas para a construção civil, pois acabamos aumentando as proteções nas obras com materiais necessários, colocando nos cálculos esse tipo de evento climático, para que tivesse mais reforço e atendesse essa demanda climática”, explica.
Após 2004, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Crea) acompanhou ainda mais os órgãos fiscalizadores de obras. “Houve adequações de normas construtivas para atender os eventos climáticos e isso aconteceu após o furacão”, ressalta.
Apesar de as normas de construção civil serem nacionais, há diferenças nas obras no Sul do Brasil. “Na verdade, de São Paulo para baixo já há diferença, pois temos estações bem definidas, ou seja, um inverno rigoroso, um verão muito quente e por muitas vezes temos as quatro estações em apenas um dia, isso interfere na construção civil. O clima impacta na construção civil, nos métodos construtivos, porque existem diferentes tipos de materiais que têm diferentes formas de dilatação, impacto, o ferro trabalha diferente da cerâmica, do vidro e tudo isso tem que ser levado em conta”, frisa.
Construção civil foi repensada em SC após o primeiro furacão. (Fotos: Frederico Rudorff/Divulgação)
Para o presidente do Sinduscon, a construção civil vem em constante evolução. “Do início do século até hoje tivemos grandes mudanças, porque acabamos tendo a entrada da tecnologia na construção, no canteiro de obra. Hoje, temos muitos maquinários que ajudam a construção civil e, por consequência, melhoram a obra”, afirma.
Mudanças nas normas após o Catarina
A construção civil precisou se atualizar após o furacão Catarina e as normas, que são um apanhado de padrões e regras estabelecidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), com o objetivo de garantir segurança, qualidade e desempenho nas obras da construção civil mudaram.
A ABNT NBR 6123:1988, que vigorava na época do furacão Catarina sofreu alterações e revisões no texto e figuras, segundo o engenheiro civil Sérgio Becke, presidente do Instituto Catarinense de Engenharia de Avaliações e Perícias (IBABE-SC):
-Reorganização do texto
-Inserção de novas seções sobre vibração por desprendimento de vórtices e ação de vento em pontes;
-Revisão de conteúdo dos seguintes temas: conforto de usuários de edifícios sob ação de vento, e vibração devida à turbulência atmosférica.
Mudanças de cálculos para as estruturas
O presidente do IBABE destaca que aconteceram algumas mudanças após o furacão Catarina nos cálculos da construção civil. “Houve mudanças, cresceram em planilhas, aumentaram os cálculos para as vibrações e estrutura. Realmente, tivemos uma melhora na norma. Uma melhora que eu digo, assim, maior segurança para as edificações”, reitera.
Defesa Civil antes e depois
A Defesa Civil em Santa Catarina foi oficialmente estabelecida e organizada em 1973, no governo de Colombo Machado Salles, por meio da Lei nº 4.841. Ela surgiu como Coordenadoria Estadual de Defesa Civil, que tinha como responsabilidade desenvolver um "conjunto de medidas destinadas a conjurar ou limitar os efeitos de fatores anormais ou adversos, determinantes do estado de calamidade pública ou de situação de emergência".
Foi apenas em 2011, no entanto, que a Defesa Civil ganhou, por meio de uma lei complementar, seu status de Secretaria de Estado. “Após um grande evento climático, de chuvas e enchentes em 2008, foi montado um grupo técnico, que estudou as ações a serem realizadas em 2009 e 2010. A elevação [do status] foi fruto do ocorrido em 2008 e desses estudos técnicos”, explica o secretário de Estado da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina, Fabiano de Souza.
Para ele, a Defesa Civil atual é resultado dessa reforma administrativa e de uma reformulação do Sistema Estadual de Proteção e Defesa Civil, por meio de legislações posteriores. Porém, na opinião do gestor, o Furacão Catarina, em 2004, já demonstrava a necessidade de instrumentalização mais tecnológica e de técnicos mais capacitados para prever fenômenos como esse. “Santa Catarina foi alertada em 2004 por agências externas. Hoje temos uma capacidade bem maior, inclusive avisando outros estados de impactos que eles podem sofrer, por conta dos instrumentos e investimentos feitos ao longo dos anos”, observa o secretário.
Entre os dias 28 e 29 de março de 2004, por meio de decreto municipal, 14 cidades da Associação dos Municípios do Extremo Sul Catarinense (Amesc) declararam estado de calamidade pública - a 15ª, Praia Grande (SC), declarou situação de emergência - devido aos “Vendavais Extremamente Intensos, Furacões, Tufões ou Ciclones Tropicais”. O número dos decretos, assim como a data de publicação e a duração do estado de calamidade pública de cada município foram compilados no Decreto Estadual n° 1691, de 26 de abril de 2004.
O secretário destaca, entretanto, outro aspecto importante na modernização da Defesa Civil estadual: uma mudança de cultura.
Hoje é uma estrutura de primeiro escalão de governo, mas além da resposta para eventos climáticos é muito mais voltada para prevenção como forma de proteção do catarinense. A Defesa Civil de Santa Catarina figura, atualmente, como uma das principais, se não a principal estrutura de Proteção e Defesa Civil no Brasil.
Fabiano de Souza, secretário de Estado da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina
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Orçamento da pasta e principais gastos
O orçamento para a pasta neste ano é de R$ 126 milhões. O valor foi votado na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) no ano passado. “Esse valor é ordinário. Temos um grande programa de obras a ser lançado no Estado, incluindo barragens e melhoramento fluvial, que será concretizado com recursos extraorçamentários, então a execução ultrapassará os R$ 126 milhões”, afirma.
Souza afirma que os técnicos da Defesa Civil ainda estudam etapas das obras do programa para definir o valor extraorçamentário necessário. Os recursos de Proteção e Defesa Civil Estadual têm diferentes destinos, como assistência humanitária, restabelecimento e reconstrução de estruturas - como pontes, por exemplo -, monitoramento e alerta, educação e capacitações, prevenção, barragens e estudos e projetos. “Além disso, também tem valores já prometidos aos municípios. O restante é aplicado em ações de manutenção de estruturas, terceirizados, energia elétrica, tecnologia e combustível, entre outros”, detalha o secretário.
Recursos para municípios
Atualmente, os recursos da Defesa Civil do Estado não são distribuídos de forma regional ou por município. “Atendemos os que precisam, seja por demanda de assistência humanitária ou por estudo e projeto a ser executado. A partir do momento em que há previsão de problemas em alguma área, também deixamos recursos reservados, mas não existe uma política de distribuição regionalizada”, informa Souza.
O secretário contou, ainda, que quando um município decreta situação de emergência, é necessário apresentar um plano de trabalho para a Defesa Civil. “Analisamos esse plano, verificamos a urgência, necessidade e nossa capacidade de atendimento. Aprovando o plano e tendo orçamento previsto, atendemos a demanda”, relata o gestor.
No âmbito municipal, conforme apurado pelo Portal Engeplus, as Coordenadorias de Proteção e Defesa Civil dos municípios da Amesc, em sua maioria, não possuem um orçamento estabelecido anualmente. Em vez disso, elas solicitam recursos da cidade conforme necessidade para atendimento à população e manutenção de suas atividades e estruturas.
Defesa Civil ganhou ampla tecnologia de monitoramento. (Foto: Thiago Hockmüller/Portal Engeplus)
Integração das Defesas Civis
O apoio mútuo entre as Defesas Civis de diferentes estados do Sul é pauta frequente principalmente nos fóruns do Conselho de Desenvolvimento e Integração do Sul (Codesul), formado pelos estados do Sul mais o Mato Grosso do Sul, e do Consórcio de Integração Sul Sudeste (Cosud), formado pelos estados do Sul e Sudeste.
No caso dos eventos que assolaram o Vale do Taquari (RS), em setembro do ano passado, o Governo de Santa Catarina enviou equipes de Defesa Civil, da Polícia Militar (PM), do Corpo de Bombeiros e de outros setores para prestar apoio. “Essa parceria e integração já ocorre, porém sem um instrumento formalizado”, analisa Souza.
Ele lembrou, entretanto, que o suporte ao estado vizinho começou ainda antes das chuvas com alertas aos técnicos do Rio Grande do Sul sobre os eventos que causaram enchentes no estado. “A iniciar pelo trabalho que os técnicos fizeram por conta dos instrumentos que nosso estado possui e o Rio Grande do Sul não, principalmente falando em antena para recepção de imagens de satélite e radares, que cobriam parte da área afetada”, detalha.
O tema de integração e cooperação foi abordado no encontro do Cosud em Porto Alegre, ocorrido entre o fim de fevereiro e início de março deste ano. “O grupo técnico que trabalha a Proteção e Defesa Civil discutiu amplamente a parceria para integração de sistemas. Na Carta de Porto Alegre já se trabalha essa parceria entre os órgãos, inclusive dentro do campo proteção e defesa civil. Não apenas no compartilhamento de informações, mas na otimização de investimentos e até no apoio operacional”, revela o secretário.
Homenagem ao colega Silmar Vieira
No dia 23 de fevereiro deste ano, o Portal Engeplus conversou com o jornalista Silmar Vieira sobre o assunto. Ainda em tratamento de saúde, Silmar teve a generosidade de gravar um áudio em que retrata com detalhes como foi sua atuação na cobertura jornalística do fenômeno. Abaixo, transcrevemos na íntegra o áudio enviado por Silmar à nossa equipe, como uma forma de homenagear este grande profissional que nos deixou no último dia 19 de março. Com isso encerramos esta reportagem especial sobre os 20 anos do Furacão Catarina.
Transcrição do áudio gravado por Silmar Vieira no dia 23 de fevereiro de 2024:
Olha, todo mundo sempre me relaciona com o clima, porque eu falo muito do clima. Na verdade, eu sempre tive muito medo de trovoada, de vento, eu tinha síndrome de pânico. E eu digo tinha, porque, graças a Deus eu me curei disso. Mas esse medo me fez, desde criança, ser um curioso, porque na verdade o medo é uma espécie de fascínio, né? Você tem fascínio por algo. O medo e o fascínio andam um lado a lado. E desde criança eu sempre li muito tudo que se relacionava a clima, a questões climáticas, a tempestades, então eu sabia a diferença, por exemplo, de um ciclone extratropical, subtropical ou tropical, tempestade tropical, depressão tropical, o que isso significava, né? Justamente porque lia muito, justamente porque isso me interessava pelo medo que eu sentia, embora a gente sempre dizia: “Olha, o Brasil não tem furacão, não tem terremoto, não tem não tem vulcão, isto aqui é um paraíso”. Ledo engano, porque a gente ia descobrir logo, logo que o Brasil tinha, sim, furacão.
Bom, naquela semana, já começava a circular o assunto na terça-feira entre autoridades. O Ronaldo Coutinho já tinha começado a avisar prefeitos sobre a possibilidade, o risco que existia desse fenômeno vir a se formar e atingir aqui a região. Mas, a época, eu estava com um contrato só de freelancer na Rádio Eldorado. Para quem não sabe o que é isso, é um contrato temporário, em que eu era contratado só para fazer o Eldorado na Praça. Eu ficava na rádio, eu ia para rádio só aos sábados. Durante a semana eu tinha um outro trabalho, eu trabalhava em outro lugar. E como nesse outro trabalho foi uma semana muito corrida, porque nós tínhamos um evento para fechar para outra semana, foi uma semana de muita correria, eu nem ouvi a previsão do tempo aquela semana para vocês terem uma ideia. Eu fiquei sabendo do Furacão Catarina, por acaso, na manhã de sábado, quando eu acordei liguei o rádio e o padre Samiro falava nesse furacão que podia atingir a região. Eu disse: “Meu Deus do céu, o padre ficou louco. Um furacão atingir a região? Que maluquice é essa?”.
E aí liguei para o plantão daquele final de semana, que era a nossa colega Cristina Locks, que era o plantão daquele final de semana. E aí a Cristina veio me contar toda a história, que realmente ia ter o furacão. E eu realmente não tinha visto nada disso. Aí eu fui pra rádio. Das dez ao meio dia tinha um programa gravado, inclusive naquele dia eu nem ia pra rádio, era um programa que eu não ia fazer, foi outra pessoa que fez. E aí, quando foi daqui a pouco apareceu todo mundo na rádio. E o pessoal foi aparecendo, o pessoal foi chegando na rádio e a gente ficou naquela: o que vamos fazer? O que não vamos fazer? E aí as meninas ligaram pro Milioli Neto. A Karina Farias ligou pro Milioli e o Milioli perguntou quem é que estava na rádio: “Ah, o Silmar tá aí? Esse negócio de clima ele entende. Conversem com ele e vocês decidam o que fazer”. Quando ele disse isso, a gente sabia o que tinha que fazer. A gente não precisava que nos ensinasse o que fazer, porque todo mundo ali sabia muito bem o que tinha que fazer.
Automaticamente, a gente começou a derrubar os programas que eram pagos. E nos finais de semana, na época, a rádio tinha vários programas que eram pagos, que comprados, as igrejas compravam espaços na rádio e tal. E a gente só ligava e dizia: “Infelizmente, este final de semana, por uma questão de interesse público, de segurança pública, nós vamos derrubar porque nós precisamos levar informação”. E aí fomos derrubando toda a programação a partir do meio-dia de sábado. Meio-dia de sábado, eu entrei no ar com o Coutinho, para referendar aquilo que a gente estava fazendo. Porque estava o sol mais lindo do mundo, estava um dia radiante, bonito. E aí você está tirando toda a programação, alterando toda a programação da Rádio Eldorado por causa de uma tempestade num dia de sol? Aí a coisa foi complicando, a gente foi sentindo o peso da responsabilidade do que estava fazendo ali. E aí a primeira coisa foi colocar o Coutinho no ar, confirmar e reconfirmar que a tempestade viria para cá, que já era um furacão em alto mar, ele já tinha alcançado a categoria de furacão, que é com ventos sustentados acima de 100 km por hora, e de que a rota dele mirava bem em cima da gente.
Bom, a partir daí a gente começou a entrevistar prefeitos, Defesa Civil, a época a Defesa Civil ainda era bem menos organizada do que é hoje, a Defesa Civil ainda era muito mais arcaica do que é hoje. Hoje já tem todo um sistema muito bem organizado, a época era cada município por si e se virava, não havia uma coordenação regional, enfim. E a gente ia ligando para os prefeitos. E aí tinha prefeitos, por exemplo, de balneários, dizendo: “Olha, eu estava até dormindo, estava tirando um cochilo depois do almoço, sábado à tarde, enfim, nem sabia de nada”. Então a gente começou a notar que a informação era fundamental para ajudar a salvar vidas, não só pela questão econômica, mas aí a gente começou a perceber que vidas estavam em jogo também por causa da falta de informação. E aí a gente foi ligando para o Governo do Estado, para a coordenação estadual da Defesa Civil, para o comando-geral da Polícia Militar, para o comando-geral dos bombeiros, para a Polícia Civil.
Enfim, a gente ligava pra todo mundo. Todas as autoridades que a gente tinha pra ligar, a gente ligou. Na época, se não me falha a memória, o Eduardo Pinho Moreira era o vice-governador. Ligamos pra ele, ele já estava vindo pra região pra acompanhar a situação daqui. Enfim, fomos ouvindo pessoas a tarde toda. E aí ligava de novo: “Arroio do Silva, Balneário Gaivota, Balneário Rincão, como é que tá aí? O tempo já tá trocando? Não, aqui o tempo tá bonito”. E aí foi indo até seis horas da tarde. Aí às 6 horas da tarde, foi um pôr do sol maravilhoso, o céu tava azulzinho, não tinha uma nuvem no céu, né? Apenas uma nuvem que vinha do mar pra terra, mas uma nuvenzinha muito, né? Não tinha cara de tempestade aquilo, embora a gente soubesse que já era parte do furacão encostando aqui.
Mas ali bateu um medo na gente. E agora, vamos continuar ou vamos parar por aqui? Porque, sinceramente, com aquele pôr do sol, com aquela tarde linda, com aquele entardecer no céu azulzinho, em pleno final de mês de março, aquilo era o indicativo de que nem ia chover. Mas é claro que era algo diferente de tudo que a gente tinha visto até então. E aí eu lembro que a gente estava no pátio da rádio quando começou a discutir. Vamos manter a programação? Vamos continuar derrubando a programação ou tocando? O que que a gente vai fazer? E aí tinha um jogo de futebol de salão, né? Do Anjos Futsal, em Florianópolis. O pessoal fez o jogo lá. E aí nós ficamos aguardando. O jogo foi a única parte da programação que foi mantida. Nesse momento a gente foi para a rua para decidir o que fazer e aí eu disse o seguinte: “Olha, gente. Como disse o Coutinho, é melhor pagar pelo excesso de zelo do que pela falta dele. E é melhor na segunda-feira estar todo mundo rindo da nossa cara do que a gente saber que a gente podia ter evitado mortes e não evitamos. Então, eu prefiro passar vergonha e fazer o que tiver que fazer aqui para que, se isso vier realmente, a gente consiga salvar vidas”.
E foi assim que nós decidimos. Todo mundo entrou na rádio de novo e começamos o trabalho. Eu e as as meninas que trabalhavam na época na produção, a Cristina Locks, a Karina Farias e a Taize Pizoni . No final das contas, quem ficou mais tempo comigo no estúdio foi a Taize Pizoni. No final da madrugada, ela estava tão moída, tão quebrada, que ela acabou dormindo em cima de uma pedra de granito. Para quem não conhece a Rádio Eldorado, a mesa da Rádio Eldorado é uma pedra de granito, ela dormiu com o rosto colado na pedra de granito gelado, porque ela não aguentava mais, de tanta ligação que a gente recebeu. Eu lembrei muito do Marcelo Parada, que fazia na Rádio Bandeirantes, em São Paulo, a volta da praia da Baixada Santista para a capital, ele fazia por celular. O celular na época era uma novidade, o celular ligando de qualquer lugar era meio que uma novidade. E o Marcelo Parada tinha sacado essa, essa possibilidade na Rádio Bandeirantes, de que agora todo carro teria no celular dentro. E ele fazia a reportagem da volta da praia e como é que estava o congestionamento da volta do litoral por celular. Ele não precisava ter um repórter lá. E a gente aqui na Eldorado imaginava o seguinte: a hora que esse vendaval chegar vai trancar a estrada, vai ter árvore no meio da estrada, e a gente tinha um repórter, que era o Allen Silva. Nós não íamos conseguir cobrir tudo. Então, o nosso repórter era o ouvinte. E o Marcelo Parada fala isso no livro “Rádio: 24 horas de jornalismo no ar”. É o ouvinte repórter trazendo informações e que o rádio hoje pode se valer disso. E naquela época, em 2004, isso há 20 anos atrás, ele tinha sacado, ele tinha descoberto esse negócio.
E aí a gente usou isso a nosso favor e começamos a receber informação de todas as cidades da região. A gente continuava ligando para as autoridades, prefeitos e para o Coutinho. E aí tiveram momentos emocionantes. Eram três aparelhos telefônicos dentro do estúdio e eles não paravam de tocar um minuto. Era colocar no gancho e tocava, colocar no gancho e tocava. E aí, em determinados momentos, a gente tinha que ligar para o Coutinho para saber se tinha alguma atualização. A gente atualizava, se não me falha a memória, de meia e meia hora ou de uma em uma hora, a gente ligava para o Coutinho para saber as novidades. E aí eu dizia no ar: “Gente, agora eu preciso ligar para o Coutinho, por favor, agora não liguem, não liguem porque nós vamos ligar para o Coutinho”. Instantaneamente, os três telefones ficavam mudos, a gente puxava o telefone, ligava para o Coutinho, fazia a atualização e continuava. O momento mais apavorante para mim foi por volta de uma e meia, duas horas da manhã, quando o vento já estava muito forte, ele já era um vento assustador e o Coutinho entrou no ar e disse: “Olha, a parte fraca passou, agora é que vem a parte forte do furacão”. Eu disse: “Não! Misericórdia, Coutinho. É impossível tu dizer pra mim que isso que nós vimos aqui foi a parte fraca, que a parte forte ainda nem chegou”. Ele disse: “Não, preparem-se, porque a parte mais forte do furacão está entrando agora”. Então aquilo foi assustador pra mim, pessoalmente pra mim, aquilo foi assustador. Assustador.
A parte que foi assustadora e foi emocionante no geral foi uma moça que ligou de Morro dos Conventos, que estava com o pai e a mãe em casa e ela já tinha ligado para os bombeiros e os bombeiros já não conseguiam mais chegar na casa dela. E a gente começou a conversar por telefone e ela, apavorada, começou a dizer no ar: “Gente, agora o furacão está levantando as telhas da minha casa. Agora eu estou vendo parte do forro sendo arrancada”. E ela foi relatando isso instantaneamente enquanto estava acontecendo. E aí a gente passou informações para ela que se ela tivesse uma banheira em casa era para pôr os pais dela que eram idosos dentro da banheira com acolchoado por cima para tentar proteger. Ou ficar embaixo de uma mesa com cobertores e acolchoados e talvez até um colchão por cima para amortecer. E tentar se abrigar ali. A gente tentava passar informações pra ela e ela relatando o que tava acontecendo no momento. Nós passamos a viver o drama dela juntos. Aquilo foi muito forte. Aquilo foi devastador do ponto de vista emocional, porque a gente, por empatia, né? Não teve como não se colocar no lugar dela e dos pais naquele momento. Ela com os pais idosos, tentando fazer o melhor possível pra proteger os pais.
E teve um terceiro momento, que foi muito interessante, que o rádio mostrou a sua força de salvar vidas com a informação. Havia uma formatura no Grêmio Fronteira, em Araranguá. E um ex-aluno meu, Marcelo Ortmeier, aqui de Forquilinha, tava lá nessa formatura e tava me ligando para saber como estava a situação. E aí ele disse: “Silmar, aqui tá céu azul estreladinho”. Era o olho do furacão. E o Coutinho avisou: “Depois do olho do furacão é que vem a pior parte”. Foi nesse momento que o Coutinho avisou: “Olha, agora tá passando o olho do furacão, que é uma calmaria, em seguida vem a parte pior”. E aí este meu ex-aluno dizendo o seguinte: “Olha, o pessoal tá pegando os carros e tá indo pra casa, porque deu uma estiada que acabou, aqui acabou e tal”. E aí eu só perguntei pra ele: “Tu tens um som potente no carro?“. Ele disse: “Eu tenho”. Eu respondi: “Então abre o porta-malas do carro e põe o som no máximo”. E aí eu comecei a dizer: “Atenção pessoal, aqui é da Rádio Eldorado. Atenção pessoal que tá na formatura no Grêmio Fronteira, em Araranguá. Não embarquem nos carros, fiquem atentos e abrigados onde vocês estão agora. O que está passando aí não é o fim do furacão e, sim, só a calmaria do olho do furacão. A parte pior vem agora. Por favor, não vão para a estrada. Fiquem aí. E a gente começou a dar esse aviso reiteradamente até que ele disse: “Olha, Silmar, o pessoal está voltando. O povo está estacionando os carros de novo. Está todo mundo voltando para dentro do Grêmio Fronteira. E, de fato, o vento já começou de novo e tá muito forte”. E aí, em seguida, nós perdemos o contato, porque deve ter caído o sinal de celular e ele não conseguiu mais falar comigo. Foi muito marcante.
E aí, quando amanheceu o dia, né? Começamos a ver os prejuízos. As ligações já vinham com o pessoal falando sobre os prejuízos. Finalmente, por volta de 4 horas da manhã, o Coutinho disse que o furacão ia perdendo força gradativamente e aí acabou. De manhã ainda soprava um ventinho, mas à tarde já não tinha mais nada. Então foi uma notícia que eu acho que muita gente ali naquele momento simplesmente desabou na cama, no sofá, em casa e dormiu. Porque ninguém dormiu aquela noite. Ninguém, não. Alguns sortudos, depois eu descobri várias pessoas, que tinham dormido a noite inteira sem sequer ouvir o furacão, o que eu acho fantástico, né? Porque por pior que seja catástrofe, sempre tem alguém que passa tranquilo por isso tudo. Mas tudo bem, que bom pra eles, né? Ai o padre Samiro chegou para avisar também das missas que estavam sendo canceladas, muitos cancelamentos e tal. E aí a gente começou a fazer esse tipo de trabalho, de informação. O que que vai funcionar? O que que não vai funcionar? O que que vai acontecer a partir de agora? O pessoal da rádio também foi conseguindo se deslocar. Aí substituímos a Taize Pizoni, coitadinha, que estava derrubada. Mas eu fui ficando e fiquei no estúdio até as duas e meia da tarde. Eu entrei no ar ao meio-dia de sábado, eu só dei uma saída no domingo de manhã, quando amanheceu o dia e o pessoal começou a chegar, o padre chegou, chegou mais gente. Eu dei um pulo na minha casa para ver como é que estavam as coisas, porque a minha mulher estava na casa do meu sogro. Eu fui na minha casa ver como é que estavam as coisas, voltei para a rádio e saí do microfone. Às duas e meia da tarde quando o Marco Búrigo assumiu para fazer o futebol.
Ficamos 26 horas e meia transmitindo. Só falando sobre o fenômeno, só falando sobre o furacão. E o que mais me traz satisfação nisso tudo é saber que um evento dessa magnitude, mesmo em países que têm uma estrutura, uma infraestrutura bem preparada, dificilmente passa com menos de 30, 40 mortos. Nós tivemos 10. Claro que para a família dos mortos o ente querido é tudo que ela tinha. Mas, digamos assim, com todo respeito às famílias dos 10 desaparecidos. Foram 8 pescadores e duas pessoas em terra firme. Então, com todo o respeito à família dos pescadores, mas nós passamos barato com dez mortes pela magnitude do evento e pela infraestrutura totalmente desestruturada que nós temos aí para enfrentar um fenômeno como esse. Esse foi o relato daquela noite de terror, de pânico, mas de muitas descobertas interessantes. E foi muito gratificante por saber que a gente pode ter ajudado a salvar muitas vidas. Eu espero realmente que esteja na minha conta nesse dia ter salvado muitas vidas, porque esse é o grande objetivo da gente no rádio, ajudar a população, é fazer um serviço de qualidade em prol da população. E eu tenho essa alegria de ter participado dessa cobertura com toda a equipe da Rádio Eldorado. Um abraço a todos.
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