Por Silmar Vieira - mundodoagronegocio@engeplus.com.br
Em 07/04/2023 às 15:55Para quem veio ler o texto induzido pelo título a imaginar que eu passaria a contar a história de uma vaquinha de estimação que ficou toda feliz e “faceira” ao receber ovinhos de páscoa, sinto muito, a história é bem outra, mas confesso contrito que me utilizei dessa artimanha para contar uma história bem mais triste, porém muito verdadeira.
A palavra Páscoa aqui remete a sua origem hebraica que significa passagem e o sentido cristão de sacrifício em prol dos outros. E Faceira, como indica a primeira letra maiúscula, se trata do nome dado a uma vaca leiteira que tivemos lá em casa e que teve um papel muito importante na nossa infância, minha e do meu irmão.
A primeira imagen que me vem a mente quando se fala em vaca leiteira é de um animal de porte avantajado, com pelo malhado em preto e branco, grandes chifres e orelhas pendidas e um grande úbere de onde pendiam tetos que obrigavam que se utilizassem as vezes as duas mãos para possibilitar a ordenha. Essas características são de um animal que tinha várias misturas de raças, mas predominava um porte de carcaça zebuína, provavelmente Gir Leiteiro, misturado a Jersey, que lhe conferiam ao mesmo tempo este porte grande, mas com boa aptidão para a produção e uma docilidade incomparável na lida. Lametável não ter encontrado uma foto dela entre as fotos antigas da família para que pudessem conhecê-la.
Apesar de intimidar pelo tamanho e cara feia, a Faceira era a mais dócil e paciente vaca que tínhamos no pequeno plantel da propriedade, incapaz de se agitar ou avançar em alguém, mesmo que estivesse com sua cria (bezerro) por perto. Muitas vacas, mesmo sendo dóceis, se transformam ao parir e cuidar de seus filhotes. Não a Faceira, pois era incapaz de qualquer gesto agressivo.
Embora a função de cada animal numa propriedade rural fosse muito bem conhecida e encarado com normalidade o destino que lhes cabia, sempre foi inevitável que as pessoas acabassem se afeiçoando aos animais que praticamente passavam a fazer parte da família e, como tal, cada qual recebia afeição conforme suas características. Um exemplo disso era nossa repulsa pela vaca Mimosa que era o oposto da Faceira e tinha por hábito dar carreirões em nós, as crianças da casa. Quando a bola de futebol caia no piquete das vacas e a Mimosa estava por perto, era uma verdadeira aventura resgatar a bola para continuar a brincadeira. Mesmo presa na baia para a ordenha, tentava investir contra nós ao passarmos pelo corredor enchendo os cochos com o trato dos animais.
A Faceira não.
Tinha sempre ótimas crias, bezerros grandes e saudáveis e mesmo uma criança poderia ir busca-la no meio do pasto com o bezerro, sem a menor preocupação. Com tamanha mansidão seria a vaca perfeita para a criançada iniciar o treinamento da ordenha, não fosse o fato de ter tetos muito volumosos que somente um adulto conseguia manusear. Ela realmente era nosso orgulho e até os vizinhos compartilhavam admiração e afeição pela Faceira.
Era comum na época que vendêssemos novilhas para outras propriedades onde eram formadas como novas vacas leiteiras e alguns tourinhos como reprodutores para outros criadores. Além disso, alguns eram castrados separados para a engorda para que depois servissem de fonte de alimento para a família. As vacas em idade avançada e já em declínio de produção leiteira tinham por destino serem vendidas para os açougues da região.
Por mais cruel que tudo isso possa parecer, é um processo necessário para o sustento de uma família, principalmente de pequenos agricultores, pois cada recurso precisa ser utilizado, ou então sobram dificuldades e sofrimento para todos. Porém, não achem que isso também não nos causava desconforto, pois como disse no início do texto, era inevitável que nos afeiçoássemos pelos animais. Mesmo que fossem outros tempos, com outra consciência e forma de encarar os fatos, em alguns casos essa afeição era ainda mais forte. E foi o que aconteceu.
E chega então um dia o caminhão boiadeiro do Seu Juca Balode, que costumeiramente vinha buscar os animais de descarte para o açougue e a aflição foi enorme ao vermos que laçaram a Faceira. Nenhum dos adultos havia nos avisado, já imaginando que nossa reação não seria das melhores. E não foi. Não havia o que fazer a não ser assistir o triste espetáculo de um animal tão dócil se transformar numa fera, provavelmente ao pressentir seu destino. Vou poupar o leitor dos detalhes do embarque, mas já podem imaginar que a coisa foi feia até que embarcassem aquela carga.
Meu avo se matinha impávido assistindo àquela cena do calvário da Feceira e nada fazia para cancelar a operação maldita. Ficamos a distancia assistindo a tudo com uma revolta enorme crescendo no coração pela inercia dele. Como podia permitir aquilo?
Naquela época homem não tinha a permissão de demonstrar sentimentos, muito menos chorar, ainda mais por uma vaca. Isso era, no máximo, para mulheres e crianças e ainda para os considerados mais molengas. Confesso a vocês que, conhecendo ele, no fundo seu o coração deveria estar mais partido que o nosso. Hoje eu entendo que o que o mantinha de pé diante daquela cena, era a responsabilidade de continuar mantendo a propriedade de pé, a mesa cheia e atendendo a todas as necessidades da família. Ele sabia que aquele sacrifício, por mais grotesco que fosse, era necessário pelo simples fato de sustentar a família e ele tinha feito muitos sacrifícios, de todas as formas para alcançar este objetivo ao longo da vida. Este era apenas mais um calo em seu coração e, por mais endurecido que estivesse, com certeza ainda sofria.
Mas era a Páscoa da Faceira, que seria sacrificada pelo bem de toda nossa família e era também a nossa páscoa, pois de certa forma naquele dia atravessamos a passagem entre a infância e suas ingenuidades e o fato inexorável de que a vida adulta exige sacrifícios de todos.
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