Por Jessica Rosso Crepaldi - jessica.rosso@engeplus.com.br
Em 13/09/2022 às 16:59Se formos buscar o significado da palavra ‘cultura’ vamos encontrar várias respostas, mais ou menos como essas: um complexo que inclui o conhecimento ou a compreensão de comportamentos e tradições. Já adianto que o conceito é amplo, e fazer esse tipo de definição poderia levar horas de debates e proporcionar muito conteúdo para ensinamentos e aprendizagem.
Mas quando se trata de possibilitar o acesso à cultura e acessibilidade, a Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) é um exemplo do que deve ser feito em todo o país. Há anos ela vem trabalhando a inclusão dentro do campus de diferentes formas.
Sabemos que a deficiência pode ser física, visual, auditiva, intelectual, psicossocial ou múltipla. Na Unesc, é possível encontrar pessoas que possuem deficiência estudando em diferentes áreas, trabalhando, ou até mesmo conhecendo o espaço. Mas, o que impressiona é que em cada corredor é possível encontrar uma história de superação e dedicação.
Me refiro às histórias que ficaram marcadas no tempo e aquelas que continuam lá, sendo construídas dia após dia. Todas elas acabam se tornando inspiração para outros que por ali irão passar, e muitas delas se tornam destaques dentro e fora do campus.
Nesta reportagem vamos mostrar como a instituição dá espaço para que as pessoas com deficiência não passem despercebidas, possibilitando que consigam se manifestar culturalmente, como afirma a coordenadora do setor de arte e cultura e coordenadora do Museu da Infância, Amalhene Lenita Baesso Reddig.
Além disso, abordaremos alguns exemplos de como estudantes, funcionários e a comunidade em geral está inserida neste contexto, e como cada personagem aqui retratado faz um chamado a você leitor para o despertar para a inclusão.
Apreciando obras de arte
As obras da artista Silvana Búrigo de Florianópolis com o tema ‘enlaces afetivos’ foram colocadas em exposição na Unesc. O trabalho da autora foi selecionado por meio de edital público, que teve a participação de diversos artistas. Ela ficou surpresa e muito contente quando soube que a universidade proporcionou aos deficientes visuais uma forma de apreciar suas obras.
“As minhas obras são narrativas. Elas contam histórias que eu vivenciei com pessoas, com amigos, com minha família atual e a minha família de origem. Quando você lê o relato é que a coisa acontece”, disse a artista, que pela primeira vez tem uma exposição individual com tradução em Braille, sendo que esta é a sexta realizada no estado. Além destas, ela teve cinco participações coletivas, em que apresentou algumas de suas obras. Essa foi a sua primeira exposição na universidade e em Criciúma.
A psicóloga e funcionária da Unesc Elisabete Gonçalves Barbosa, 37 anos, é 100% cega. Ela já visitou muitas exposições e considera importante o uso do braille para explicação das obras, assim como outros fatores que contribuem para a comunicação de pessoas com deficiência. "A inclusão não é só colocar a pessoa com deficiência ali e dizer que tem aluno com deficiência. É fazer com que ele se sinta pertecente à universidade".
Segundo a psicóloga, quando existem as etiquetas em braille ou a interpretação em libras em um evento, a universidade está dizendo que o evento é para todos. Assim também funciona com o acesso adequado para pessoas com deficiência física. É uma forma de dizer a elas que podem se sentir pertencentes ao espaço e que elas devem estar inseridas nesse ambiente, como ir a uma exposição de arte e sentir que poderá contar para outras pessoas o que encontrou lá.
"A inclusão não é um processo que já está pronto, ela é um processo que está caminhando. Nas últimas decadas tem mudado muito a forma de se enxergar a inclusão
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Elisabete Gonçalves Barbosa
Funcionária Elisabete Gonçalves Barbosa apreciando as obras da artista Silvana Búrigo
Acadêmica 100% sem visão integra equipe da Unesc
A história de Elisabete com a universidade começou em 2006, quando ingressou no curso de Psicologia. Ela foi a segunda aluna 100% cega a frequentar a Unesc.
Apelidada de 'Bet' pelos colegas e amigos, ela contou como foi desafiador iniciar no ensino superior. "Não tínhamos o Setor de Apoio Multifuncional de Aprendizagem (Sama*) ainda, porque ele foi instituído em 2014, quando eu já tinha terminado a graduação. Mas existiam outros setores que acabavam se envolvendo de alguma forma nessa luta pela inclusão. Fomos apredendo juntos, trazíamos ideias para fazer adaptação de material, e fomos buscando e contruindo dentro das possibilidades. Já naquela época [2006] eu tive muito apoio da instituição".
Uma das dificuldades era que não existia na universidade quem fizesse a escrita em sistema braille. Até então, ela passava o dia na universidade e utilizava a tecnologia assistiva (de apoio), que já era uma possibilidade de utilizar o sistema por meio do computador.
"Fomos fazendo adaptações. Eu vinha para cá pela manhã, já ficava à tarde, escaneava todo o meu material para fazer as leituras e atividades que já eram propostas no curso. Depois de algum tempo a nossa biblioteca ampliou os serviços. Eles têm um Núcleo em que passaram a digitalizar os materiais para alunos cegos e outros alunos que precisavam do material digitalizado. Isso é feito até hoje", relembrou.
Elisabete é formada em Psicologia pela instituição e faz parte da equipe de profissionais da Unesc desde 2014. Há 4 anos ela passou a exercer, no Sama, uma função que atende as dificuldades nos processos de aprendizagem dos acadêmicos que apresentam deficiências, transtornos ou dificuldades específicas.
*O Sama dá apoio ao aluno até o momento em que ele precisa. O objetivo do Sama é deixar o aluno independente, autônomo para que ele consiga concluir a sua graduação sem precisar dos seus serviços, embora alguns destes sejam essenciais até o fim do curso, como é o caso dos intérpretes de Libras. O Sama oferece ainda atendimento de psicologia, de psicopedagogia, realiza orientação aos coordenadores, aos professores, faz adaptação metodológica, e auxilia no atendimento aos alunos com deficiência.
Cerca de 80 a 100 acadêmicos passam pelo Sama a cada semestre, de acordo com a coordenadora do Sama, Zélia Medeiros Silveira. O contato com o setor inicia no ato da matrícula, quando o acadêmico identifica-se como sendo deficiente. A informação chega até o setor que faz o contato para saber se o aluno tem intesse em conhecer o Sama. A partir daí inicia uma conversa para saber se o acadêmico necessita de algum tipo de atendimento, alguma tecnologia assistiva ou atendimento psicopedagógico, psicológico ou intérprete de Libras.
"Por exemplo, nós temos acadêmicos com baixa visão, então para eles nós ofertamos lupas, para que possam enxergar melhor. Também auixiliamos professores com algumas técnicas que eles podem utilizar para este acadêmico, algo simples até, como colocar textos em letras maiores. Conversamos [com o acadêmico] para saber qual o tamanho da letra que ele enxerga, além de outros recursos. Para os cegos, pedimos autodescrição de imagens ou para ele ter o cuidado de não passar o filme legendado, questões que buscamos atender", explicou.
A importância do braille no ensino superior
Bruna Luiz Rabello, 25 anos, viu a mãe se tornar a primeira professora da sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE) em Içara, no ano de 2012. Foi por meio dela que Bruna começou a se interessar pelo braille*.
“Quando ela assumiu a sala de AEE tinha uma aluna com cegueira. Minha mãe estudou o braille para ensinar a aluna. Me interessei e comecei a estudar junto. Fiz diversos cursos e fui me aperfeiçoando na área”, afirmou. Desde então, Bruna trabalha com alunos com cegueira, já tendo trabalhado na rede estadual e na rede municipal de ensino.
Desde maio de 2021 passou a prestar serviço para a Unesc, produzindo etiquetas em braille com informações de obras colocadas em exposição, por meio do setor de Arte e Cultura da universidade, sempre que necessário. Segundo ela, ao longo dos últimos anos a Unesc vem buscando garantir a acessibilidade aos seus acadêmicos, através de reformas e adequações feitas no campus, visando melhorar a permanência de pessoas com deficiência no local.
"Muitas pessoas com cegueira e baixa visão, assim como com outras deficiências, acabam não ingressando nas universidades por falta de acessibilidade. A iniciativa [da Unesc] de começar a inserir o braille em suas exposições e eventos é de grande valia pois dentro da universidade há pessoas com deficiência visual e eles têm o direito de ter acesso a todas as informações".
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Bruna Luiz Rabello
Bruna Luiz Rabello é professora de matemática e pedagoga, com especialização em educação especial e em deficiência auditiva e trabalha no Núcleo de Produção de Materiais, pertencente à Educação Especial Inclusiva do município de Içara.
*Braille é um sistema universal de leitura e escrita, criado no século 19 por Louis Braille, esse sistema é utilizado para garantir que pessoas cegas consigam ler, proporcionando assim, maior independência para o cego em nossa sociedade.
Língua Brasileira de Sinais - o amor pela profissão
Wanderson Chaves de Lima, 38 anos, é intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Na foto acima ele traz o sinal do amor, sentimento que carrega pela profissão que escolheu.
"Inclusão não é só colocar o intérprete. Existem outros fatores, como por exemplo, os funcionários, os professores e os alunos que precisam ter o básico para que possam se comunicar e interagir com o surdo dentro da sala de aula"
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Wanderson Chaves de Lima
Segundo o intérprete, o surdo tem uma visão tridimensional, por isso é necessário, por exemplo, que as salas sejam apropriadas para ele, para que não se distraiam. Wanderson contou que sempre teve muito contato com surdos, sendo um deles o próprio irmão. Há quatro meses ele está na região Sul de Santa Catarina, acompanhando o irmão que busca pela vida do sacerdócio. Ambos são naturais do Rio de Janeiro.
Neste tempo ele trabalhou em uma empresa no Distrito do Caravaggio, em Nova Veneza, e foi através do santuário que conheceu uma professora da Unesc e resolveu enviar o curriculo para a instituição.
"Vejo que aqui a universidade está bem preocupada com essa questão [da inclusão], não só dos surdos mas também de outras deficiências, e isso me deixou bastante motivado a vir para cá".
Foi essa motivação que fez com que o intérprete aceitasse o desafio de trabalhar pela primeira vez em uma instituição de ensino, mesmo com receio, por conta da mudança de sotaques de um estado para o outro.
A história de Wanderson Chaves de Lima com a Libras iniciou logo depois que concluiu o Ensino Médio, há 15 anos. Na época ele teve a oportunidade de realizar um trabalho voluntário com um amigo da escola. “Procurei uma Igreja [sou católico], então procurei a Pastoral dos surdos para que eu pudesse estar mais envolvido com a comunidade surda. Comecei fazendo a interpretação da missa, depois fiz a faculdade, já estava envolvido com o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) do Rio de Janeiro", contou. Ele ainda fez a monografia em Administração sobre Administração Inclusiva de alunos surdos nas instituições educacionais.
Antes de vir para Santa Catarina ele administrava uma ONG de crianças com câncer. Hoje, Wanderson faz parte da equipe de intérpretes da Unesc que, além da sala de aula, desempenha o papel essencial da linguagem de gestos em eventos, vídeos institucionais, na TV Unesc, e em vídeos para aulas de ensino a distância (EAD).
O dançarino cadeirante
Jeferson Francisco, de 27 anos, viu sua vida mudar após sofrer um acidente de moto em abril de 2016, enquanto se deslocava para o estágio em uma academia em Içara. Na época estava no segundo semestre do curso de Educação Física da Unesc.
Ele sofreu fraturas nas vértebras L1 e T12, tendo uma compressão medular. Com isso, perdeu a maior parte dos movimentos dos membros inferiores. Hoje, já formado, o personal trainer e técnico em administração conta como foi desafiador se adaptar a uma nova realidade e como a dança transformou a sua vida.
O primeiro contato com a dança aconteceu cerca de um ano após o acidente, por meio de uma das professoras do curso de Educação Física, Viviane Candiotto, que também era professora da Companhia de Dança da Unesc.
“Desde o começo foi tudo uma novidade tanto pra mim, quanto pra ela, em trabalhar com uma pessoa com deficiência que utiliza cadeira de rodas”, relembrou o ex-acadêmico. Mas ambos não desistiram, procurando formas e possibilidades do que era possível ser feito, e juntos aprenderam um com o outro. “Ela dando as ideias e adaptando para a minha realidade, e fazendo sugestões necessárias para o melhor andamento possível da coreografia”, pontuou.
Foi assim que surgiu a coreografia “Reencontro”, apresentada no dia 30 de novembro de 2019 no Teatro Municipal Elias Angeloni, em Criciúma, no 20º Unesc em Dança - Abertura Mostra Sênior de Dança.
Bailarinos Jefferson Francisco e Júlia Fernandes apresentando a coreografia ‘Reencontro’ - Produção Cia de Dança Unesc - Setor Arte e Cultura
O dançarino retrata esta coreografia como ‘satisfatória para todos os envolvidos’.
“Eu amei a experiência de dançar e de realmente me sentir dançando, porque em uma outra coreografia que participei, relatei para Viviane que não me sentia dançando, era algo muito formatado e então fomos atrás de algo novo e que me desse essa sensação real”
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Jefferson Francisco
A oportunidade e o incentivo foram além do que o dançarino esperava. “Eu era muito tímido e com todo apoio fui capaz de me apresentar em um teatro cheio, coisa que jamais passou pela minha cabeça antes”, disse.
As necessidades trazidas por Jefferson Francisco após o acidente touxe mudanças também para a universidade, visto que a Unesc se mostrou preocupada em atendê-las oferecendo acessibilidade. “O bloco em que eu estudava foi todo reformado depois do meu acidente, e algum tempo depois também participei junto a outras pessoas com deficiência de um grupo que visitava toda a universidade em busca de possíveis melhorias que poderiam ser feitas, tornando a universidade um lugar acessível a todos”, relembra o ex-acadêmico.
Uma das principais mudanças pontuadas por ele, foi a reforma do pátio para que o ambiente ficasse no mesmo nível das salas, facilitando o acesso com a cadeira de rodas. As salas tinham desnível, tendo acesso por um degrau.
Depois da formatura, o ex-acadêmico contou que acabou se afastando da companhia de dança, e confiante seguiu por outros caminhos na área do esporte e da musculação. Além disso, ele faz parte de um projeto da Associação Vida Ativa, como treinador e atleta, em um novo projeto de time de basquete em cadeira de rodas, no bairro Santa Bárbara, em Criciúma. A associação é voltada ao cuidado de pessoas com deficiência, em especial aos lesados medulares.
O jovem participa ainda de um projeto chamado “Pernas solidárias”, que dá a oportunidade a pessoas com deficiência de participar de corridas em handbikes ou em triciclos.
O protagonista
A fotografia na galeria dos pensadores, capa desta reportagem, nos leva a refletir sobre o papel da cultura, a importância do acesso e a necessidade de se ter acessibilidade.
Na fotografia a funcionária Elisabete, que um dia foi aluna da instituição, toca em um ponto específico do quadro feito de mosaico, o coração de um pensador: Adam Smith, que defendia o acesso à Educação.
A reitora da Unesc, Luciane Bisognin Ceretta pontuou que a universidade é acessível, inclusiva, plural, democrática e acolhedora. Diferenciais de uma Instituição Comunitária que atua para a melhoria do ambiente de vida em todos os aspectos.
"O cuidado com as pessoas que possuem deficiências, transtornos ou dificuldades específicas de aprendizagem está assegurado em nossa Política de Inclusão e Permanência, que vem sendo incrementada nos últimos anos. Entendemos que a premissa da inclusão social encontra amparo na educação superior, que forma para a vida pessoal e profissional, bem como para o exercício pleno da cidadania”, afirmou.
A soma das histórias retratadas aqui mostra a importância de ambientes e instituições que valorizam aqueles que fazem parte dela. Com as contribuições construídas pela Unesc, seus acadêmicos conseguem tornar realidade a busca por seus sonhos, tornando-se protagonistas de sua própria história.
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