Especial

Tecnologias assistivas e inteligência artificial ajudam pessoas com deficiência visual

Evolução nos últimos três anos abriu possibilidades de acesso

Por Jessica Rosso Crepaldi - jessica.rosso@engeplus.com.br

Em 28/03/2025 às 16:21
imagem da noticia
Foto: Jessica Rosso Crepaldi/Portal Engeplus

Nos últimos 30 anos a tecnologia tem possibilitado melhorias no cotidiano, inclusive para pessoas com deficiência visual. Você já imaginou uma pessoa cega enxergar o mundo sem ver?

O avanço da tecnologia nos últimos anos e com o surgimento da inteligência artificial (IA), está possibilitando mais autonomia no dia a dia, com a riqueza de detalhes. Mas será que a sociedade está preparada para isso, ou compreende o real impacto da acessibilidade? A reportagem do Portal Engeplus conversou com dois moradores de Criciúma e conta a partir de agora sobre os desafios e as superações já conquistadas.

Francis Guimarães, 31 anos, nem sempre foi cego. Ele nasceu com a doença denominada de distrofia de cones-bastonetes, mas só descobriu o que estava afetando seus olhos quando já estava com quase 100% de perda da visão.

Em algum momento a partir dos 12 anos surgiu uma neblina em sua visão, que foi se aproximando aos poucos, tornando tudo mais branco. O cinza ficou acinzentado, o rosa desapareceu, o azul sumiu, e a qualidade visual foi diminuindo até ficar apenas a percepção de claro e escuro. Uma percepção de ser dia ou noite. Sem enxergar formas, sem vultos. 

Foram quase 17 anos da sua vida em que ele pode conhecer e reconhecer cores, pessoas, natureza, cidades e gestos. Depois disso, além de ter que se adaptar a uma nova forma de viver, redescobriu o que era a sua felicidade e se encontrou em um mundo com barreiras, sendo a maior delas, a ‘social’. Enfrentou situações de capacitismo, ou seja, discriminação e preconceito até chegar a ter fadiga de acesso, que ele descreveu como cansaço físico, emocional e intelectual, que atinge pessoas com deficiência que tentam acessar serviços, espaços e direitos.

Hoje, Francis é formado em pedagogia, com pós-graduação em educação especial, tendo atuado na maior parte de sua carreira com tecnologia assistiva, sempre buscando auxiliar outras pessoas cegas ou com baixa visão a terem autonomia. Foi utilizando a tecnologia que Francis descobriu possibilidades, aprendeu e ensinou outras pessoas. Atualmente trabalha remoto na área de tecnologia da informação (TI).

Fotos: Jessica Rosso Crepaldi/Portal Engeplus

Residindo em Criciúma

Natural de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul (RS), morou na maior parte do tempo na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Segundo ele, foi lá que frequentemente se deparou com o desconhecimento das questões relacionadas à deficiência por parte da sociedade. 

Francis é casado e tem uma menina de 4 anos. A esposa tem 5% da visão e a filha não possui deficiência visual. Há oito meses ele decidiu se mudar com a família para Criciúma, por conta da enchente que atingiu o Estado vizinho. “Procurei uma cidade segura, boa de se viver e morar”, afirmou Guimarães.

Durante esse período descobriu que o município é bem estruturado e fácil de andar pelas ruas. “Gosto bastante, estou me acostumando. Os lugares que eu mais frequento já se acostumaram comigo. Criciúma tem muitos sinais sonoros e isso é uma raridade”, disse. Entretanto, se deparou com situações desagradáveis envolvendo pessoas.

“Assim como qualquer outra cidade mais afastada da capital, onde tem menos pessoas cegas, a gente se depara com mais capacitismo. Às vezes chego em um bar, e as pessoas fazem piada, debocham, porque elas desconhecem [a realidade]. Ainda estão presas lá nos anos 40, 50, onde todo cego ficava na porta de uma igreja pedindo esmola".

Discriminação, preconceito e bullying

O capacitismo, que é o termo utilizado para pessoas com deficiência quando sofrem discriminação e preconceito, não é uma novidade para Guimarães. O pedagogo vivenciou isso enquanto adolescente. 

Francis passou por um período de quase cinco anos de adaptação até ficar completamente cego, antes dos 17 anos. “Eu tinha muita vergonha de usar a bengala, eu tinha muita vergonha das pessoas, eu sofri muito bullying na escola, muitos professores disseram para mim que não tinham estudado para dar aula para alguém como eu”, relembrou.

As situações em que ele era colocado na época fez com que tivesse dificuldade de perceber seu lugar. “Todo mundo precisa ter o seu grupo de pessoas que pertencem, que entendem, isso é uma coisa humana”, frisou. 

O grupo com o qual convivia foi se afastando. “O desconhecido assusta, e as pessoas por acharem que eu ficaria muito triste, e que seria muito difícil, se afastaram de mim”, afirmou. Enquanto isso, ele estava aprendendo a andar de bengala e estudava o braille, um sistema de escrita tátil,que eram as necessidades naquele momento.

Não é o fim do mundo que as pessoas pensam, porque o nosso cérebro tem a capacidade de ir se adaptando. A barreira maior mesmo, além de toda adaptação, é a barreira social".


Até hoje, Francis precisa driblar barreiras e faz isso frequentemente. Mas o que mais o incomoda ainda é o capacitismo. “Imagina no final do meu dia de trabalho, chegar na porta do mercado e receber uma esmola? É algo que me fere. Eu estou sujo? Estou mal arrumado? Não, é porque a pessoa associa cegueira à miséria, à falta de conhecimento, raciocínio", contou. 

O pedagogo explicou que ainda existe muito presente a ideia de que uma pessoa cega é alguém sem utilidade e que não ajuda a girar a economia, mas que essa não é a realidade. “Pelo contrário. Nós somos pessoas produtivas, cada uma com seus gostos. Tem pessoas cegas que gostam de rock, outras de MPB, assim como algumas frequentam igreja e outras não. Não existe uma generalização, como muitas vezes acredita-se que existe. Eu vejo que esse é um grande problema. Se generaliza muito a questão da pessoa pela deficiência. As pessoas entendem que se é cego, são todos iguais. Não, nós somos todos diferentes”, afirmou.

IA inserida e aliada às tecnologias assistivas

As tecnologias assistivas, que são recursos e dispositivos que auxiliam pessoas com deficiência, ganharam uma nova aliada nos últimos anos: a inteligência artificial (IA), que quando aplicada a essas ferramentas as tornam mais avançadas e acessíveis.

Hoje, uma pessoa cega consegue chamar um carro de aplicativo, usar as redes sociais, ter acesso a um jornal ou a uma receita médica com letra manuscrita, entre tantas outras coisas.

Ocorre que muitas pessoas não sabem que existe esse tipo de tecnologia, conforme Francis. As pessoas não acreditam que eu posso fazer um Pix. Eu posso fazer desde que o aplicativo bancário seja acessível, e hoje grande parte dos aplicativos são”, destacou.

Pessoas cegas ou com baixa visão conseguem utilizar tanto o  Android quanto o iOS, o Windows e o Macbook. “Hoje tenho acesso a minha televisão com o Android, pois ele fala. O meu computador fala.  São softwares e aplicativos que fazem a leitura de tudo que aparece na tela. E, diante disso, temos acesso a todos os aplicativos”, explicou.

O pedagogo relatou que existem aplicativos específicos para pessoas cegas que utilizam a IA, que descrevem, por exemplo, uma imagem ou uma cena, como é o caso do Be my Eyes. Também estão disponíveis os aplicativos que são para todas as pessoas, como o  Chat GPT ou o Gmini. Neles as pessoas com deficiência podem acessar a câmera, informar sua condição e pedir descrições detalhadas. 

 

“O que a inteligência artificial me ajuda hoje? Posso ver a cor de uma camisa, ler um documento, saber a cor de um bife. [A tecnologia] apresenta falhas, mas consigo, por exemplo, uma coisa que não conseguia fazer antes, reconhecer um painel da máquina de lavar. Uma coisa que é muito importante, que eu utilizo muito é o termômetro para ver se minha filha tem febre. O aplicativo me diz qual é a temperatura que marca”.

 

Francis percebeu um grande avanço da tecnologia nos últimos três anos com a explosão do Seeing ai, um aplicativo gratuito da Microsoft que realiza a leitura de textos impressos ou manuscritos, reconhecimento de códigos de barras, de cédulas de dinheiro e detecção de luminosidade, e do Be My Eyes. Ambos os aplicativos possuem IA, e possibilitam mais independência na tomada de decisões, ou seja, mais autonomia. 

“Eu acredito que a tecnologia oferece uma maior qualidade de vida. Não sei quem eu seria hoje e o que eu faria se não fosse a tecnologia. Vejo o smartphone, o computador como uma espécie de prótese. Sempre pesquisei muito sobre isso, e nós cegos, principalmente as gerações mais recentes, procuramos muito a tecnologia para suprir a falta de visão”, afirmou.

É fato que as tecnologias assistivas com a inteligência artificial aplicada, geram possibilidades que antes não eram possíveis, como ter a experiência de ir ao cinema, onde a ferramenta sincroniza com o filme e descreve as cenas. “É algo fantástico, que possibilita uma inclusão muito maior, uma qualidade de vida muito maior”, disparou Francis. 

O que não se sabe é o quanto a sociedade tem conhecimento sobre isso. “Eu vejo que as pessoas ficam ‘boiando’, pensando, o que ele está fazendo? Ou como é que ele faz? Muitas vezes outras pessoas dizem, mas ele enxerga, como é que ele usa o telefone? Ou elas dizem, coitado, o telefone dele está de cabeça para baixo. Ele não sabe? Claro que eu sei, porque na rua eu utilizo assim o alto-falante mais próximo do meu ouvido, pois é mais fácil para que eu possa ouvir”, concluiu o pedagogo. 

DJ cego 

Assim como Francis, outras pessoas que possuem deficiência visual também buscam serem os protagonistas das suas próprias histórias, como é o caso do criciumense, o DJ Renan Dal Ponte Cardoso, de 29 anos, que se considera uma pessoa muito independente e faz uso das tecnologias assistivas e IA. 

Ele mora sozinho, e para ter mais autonomia tem o auxílio da Uva, uma cadela treinada para ajudá-lo. O animal possui três anos e está com ele há quase dois. 

“Ela me dá muito mais independência para fazer caminhadas, muito mais segurança. Então é minha companheira para todos os momentos”, contou. Renan também utiliza bengala quando necessário.

Diagnosticado com glaucoma, ele teve baixa visão até os 11 anos, e hoje é conhecido no meio musical por ser o primeiro DJ brasileiro cego de psytrance. A habilidade surgiu com o gosto pela música eletrônica que tem desde criança, e se tornou um trabalho artístico como renda extra, nos últimos 10 anos. A principal atividade profissional dele é a mesma de Francis, na área de TI, focado em acessibilidade. 

“Sempre tive o sonho de ser DJ, de ir em uma rave, de estar inserido nessa cena, então na minha adolescência comecei a frequentar festas, comecei a amadurecer a ideia, comprei equipamentos de DJ, e comecei a estudar. Eu ouvia os DJs tocando na rádio com 10, 11 anos e achava legal como eles faziam para mixar as músicas. Foi assim que me despertou o interesse", relatou. Renan já se apresentou em várias festas na região, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, em alguns festivais. 

 

Para conseguir tocar ele utiliza somente tecnologia assistiva. Explicou que memoriza a sequência dos botões, e assim sabe as posições de cada um para conseguir interagir com o equipamento. Além disso, utiliza o computador que tem um software leitor de telas, que o auxilia com as músicas. “Ele vai lendo tudo que tem na tela do computador e pela controladora consigo controlar o software de DJ”, detalhou.

Já a IA trouxe para ele a possibilidade de ter mais detalhes, como na hora de comprar um equipamento novo, ou mais facilidade na adaptação de como utilizá-lo, além de auxilia-lo a se organizar no dia a dia com mais agilidade. 

O DJ contou que as pessoas acabam ficando surpresas ao vê-lo se apresentando. “Elas ficam bastante curiosas com como eu faço para me apresentar, para me encontrar no meu equipamento, como faço para selecionar as músicas. É mais nesse sentido que as pessoas têm dúvida”, ressaltou. 

Ele também comentou que eventualmente enfrenta comentários indesejados. “Gente que às vezes nunca teve contato com pessoas com deficiência, às vezes tem um pouco de pena, um pouco de preconceito. Algumas pessoas lidam melhor com isso do que outras. Eu sou uma pessoa mais tranquila e às vezes relevo, mas esse tipo de comentário depende muito da pessoa”, pontuou.

De acordo com a psicóloga Ester Rosa,  existem inúmeros impactos psicológicos pra uma pessoa com deficiência não inclusa na sociedade. “A exclusão da mesma, mesmo que de forma ‘inconsciente’ gerada pela sociedade, através de um olhar, de uma fala, ou até mesmo de um julgamento, pode gerar sentimentos de rejeição, solidão, desesperança e depressão”, enfatizou.

Conforme a profissional, falar sobre inclusão vai muito além de acessibilidade. Trata-se também sobre respeito e igualdade. "Para uma pessoa cega ou com qualquer outra deficiência, isso significa ser vista pelo que realmente ela é, com todo o seu potencial e suas verdadeiras habilidades, sem barreiras, preconceitos e limitações", ressaltou. Para ela, é preciso construir um mundo onde as diferenças não sejam obstáculos, e romper essa barreira é saber que a verdadeira visão de cada pessoa, não reside nos olhos, mas na capacidade de enxergar a pessoa cega como igual, com os mesmos direitos, sonhos e potencial.

Leia mais sobre:

inteligência artificial,

tecnologias assistivas,

pessoas cegas,

pessoas com baixa visão,

pessoas com deficiência visual.

Receba as principais notícias de
Criciúma e região em seu WhatsApp.
Participe do grupo!

Clique aqui

Confira mais de Especiais Engeplus