Por Mário Luiz
Em 23/05/2024 às 17:38Assunto que fervilhou nos noticiários políticos e policiais há alguns meses é a tal da “saidinha” de presos. Alguns disseram que se trata de um instrumento para ressocialização do condenado. Os opositores argumentaram que se trata de uma mostra de impunidade e que deveria acabar. Depois veio a notícia de que teria acabado. E, por fim, anunciaram que não acabou nada.
Para entender melhor esse contexto, será necessária uma revisão do que se trata esse instituto jurídico e como se deu o processo político.
A vulgarmente conhecida “Saidinha” é denominada tecnicamente de Saída Temporária. Trata-se de um instituto previsto nos artigos 122 a 125 da Lei de Execuções Penais – LEP (Lei 7.210/84), pelo qual é permitido ao preso condenado sair do estabelecimento penal onde cumpre pena por um certo período, sem vigilância.
A lei prevê (ou previa) que o preso que cumpre pena privativa de liberdade em regime semiaberto pode sair do estabelecimento prisional por sete dias, cinco vezes em um ano, para visitar sua família. Friso, sem vigilância, ou seja, sem o acompanhamento de policiais penais ou de qualquer outro agente do estado. O condenado sai pela porta da frente do estabelecimento prisional e se compromete a voltar após sete dias.
Como o desiderato do benefício é a visita à família, em regra, ele é concedido em datas festivas: Natal, Ano Novo, Páscoa, Dia das Mães, etc.
A LEP também prevê a possibilidade de Saída Temporária para o condenado sair para estudar (cursos profissionalizantes, ensino médio ou superior). Ou seja, é permitido ao condenado ausentar-se do cárcere, sem vigilância, para frequentar ambientes escolares.
Há ainda uma terceira hipótese prevista na lei, de cunho mais genérico, qual seja, participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
E quais os requisitos para se obter esse benefício?
De longa data, a Saída Temporária é alvo de acalorados debates na área jurídica e social. De um lado, há os que a criticam ferrenhamente, alegando que se trata de uma manifestação da insuficiência estatal na responsabilização daquele que infringiu uma lei penal (posição a qual eu me filio). O Estado tem a obrigação de, após o devido processo legal, aplicar uma pena proporcional ao delito praticado. A pena não deverá ser mais drástica que o mal causado pelo crime, mas também não poderá ficar aquém da gravidade de sua conduta. Ou seja, nas palavras do renomado criminólogo Cesare Beccariea, devera ser proporcional, “nem de mais nem de menos”.
Os críticos asseveram que permitir que aquele que está submetido a pena privativa de liberdade possa periodicamente interromper a sua reprimenda e inserir-se na sociedade, antes de cumprir a sanção que lhe foi imposta pelo mal causado, trata-se de flagrante manifestação de impunidade. Ainda, suscitam o fato de que inúmeros condenados saem e não retornam. Pesquisas apontam que 5% dos presos não retornam. A título de ilustração, no Natal de 2023, em torno de 52 mil presos no Brasil foram beneficiados com a Saída Temporária. Desses, 95% retornaram (em torno de 49 mil) e 5% não.
Observação: 5% parece pouco, mas isso representou (apenas na saída do Natal) em torno de 2,6 mil presos que não voltaram para terminar de cumprir a sua pena privativa de liberdade.
Além disso, tem-se registrado inúmeros casos de condenados que, durante o período em que estão gozando do benefício, praticam novos crimes.
Por outro lado, os defensores da Saída Temporária asseveram que se trata de um mecanismo que favorece a reinserção social e familiar, colaborando para a ressocialização do condenado, sendo esta uma das finalidades da sanção penal.
Pois bem, feita essa revisão do aspecto jurídico da Saída Temporária, passo a descrever os movimentos políticos em seu entorno.
Desde 2011 havia um projeto de lei (PL) nos escaninhos da Câmara dos Deputados tratando sobre Execução Penal (PL nº 583/2011), de autoria do então Deputado Pedro Paulo (MDB-RJ). Em 2022, o Deputado Capitão Derrite (PL-SP) propôs um substitutivo ao projeto mencionado (PL 2253/2022), prevendo o fim do instituto da Saída Temporária.
Em 03 de agosto de 2022, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei pelo placar de: 311 votos favoráveis, 98 contrários e uma abstenção. Aprovado na Câmara, o projeto de lei foi encaminhado para discussão e votação no Senado Federal e lá tramitou – a passos lentos – até janeiro de 2024.
No dia 05 de janeiro de 2024, um trágico crime fez com que o Senado reagisse e retomasse a discussão sobre o tema. Em Belo Horizonte (MG), na noite do dia 05 de janeiro, o policial militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos foi morto com um tiro na cabeça em um confronto com criminosos. O autor dos disparos, Welbert de Souza Fagundes, estava usufruindo do benefício da Saída Temporária.
Assim, em 20 de fevereiro de 2024, o Senado aprovou o projeto de lei (relatado pelo senador Flávio Bolsonaro – PL-RJ) dando fim ao benefício da saída temporária, pelo placar de 62 votos favoráveis, 02 contrários e uma abstenção.
Então a “saidinha” acabou? NÃO!
Ocorre que o projeto de lei foi aprovado na câmara extinguindo todas as hipóteses de Saída Temporária. Contudo, no Senado ele foi aprovado com mudanças. O Senador Sérgio Moro (União-PR) propôs uma emenda ao projeto para que as saídas dos condenados para estudar fossem mantidas. Emenda essa que foi aprovada.
O processo legislativo federal no Brasil é bicameral, ou seja, exige-se a aprovação em ambas as casas legislativas do Congresso: Câmara e Senado (art. 65 da CF). Uma casa funciona como Casa Iniciadora (onde o projeto de lei é iniciado) e a outra como Casa Revisora (a segunda casa). Como o nosso processo legislativo exige que um projeto de lei seja aprovado em ambas as casas, quando ele é alterado na Casa Revisora, deve retornar para a Casa Iniciadora para discussão e votação da alteração.
No caso do PL 2253, a Câmara funcionou como Casa Iniciadora e o Senado como Casa Revisora. Como houve alteração no Senado, ele voltou para nova discussão e votação na Câmara.
Em 20 de março de 2024, a Câmara aprovou o projeto de lei, com as mudanças promovidas pelo Senado, dando à lei o nome de “Lei Sargento PM Dias”.
A redação final trouxe as seguintes regras:
Então, agora a “saidinha” acabou? Ainda NÃO!
A Constituição Federal, ao estabelecer as regras do processo de criação de leis, determina que, após o projeto de lei ser aprovado pelo Poder Legislativo, ele deverá ser apreciado pelo chefe do Poder Executivo, o qual poderá sancioná-lo, e aí sim tornar-se lei, ou poderá vetá-lo (art. 66 da CF). Segundo o texto constitucional, o Presidente poderá vetar um projeto de lei se considerá-lo inconstitucional ou contrário aos interesses públicos (§ 1º do art. 66 da CF).
E assim aconteceu! O Presidente Lula entendeu, em 21 de março de 2024, vetar a parte do projeto de lei que acabava com a Saída Temporária.
O projeto de lei 2253 transformou-se na Lei 14.843/24, tratando de outras matérias relacionadas à Execução Penal, porém o seu conteúdo mais importante, que era a revogação do dispositivo que versava sobre a Saída Temporária (art. 122 da LEP), foi vetado pelo Presidente da República.
Essas foram as razões invocadas pelo Presidente para o seu veto:
“O instituto da saída temporária está atrelado, exclusivamente, ao âmbito do regime semiaberto, no qual a projeção temporal de execução da pena exige, do Estado, atuação proativa para a obtenção do equilíbrio entre (i) a privação da liberdade de quem infringiu a lei penal (ação punitiva) e (ii) a sua progressiva reintegração (ação preventiva).
Destarte, a proposta de revogação do direito à visita familiar, enquanto modalidade de saída temporária, restringiria o direito do apenado ao convívio familiar, de modo a ocasionar o enfraquecimento dos laços afetivo-familiares que já são afetados pela própria situação de aprisionamento.
É basilar ponderar que, à luz dos delineamentos declarados pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 347, a manutenção de visita esporádica à família minimiza os efeitos do cárcere e favorece o paulatino retorno ao convívio social. Tal medida não se dá por discricionariedade estatal, mas, sim, pela normatividade da Constituição, que, ao vedar o aprisionamento perpétuo, sinaliza, por via reflexa, a relevância da diligência pública no modo de regresso da população carcerária à sociedade.
Portanto, a proposta legislativa de revogação do inciso I do caput do art. 122 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal é inconstitucional por afrontar o teor normativo do art. 226 da Constituição, que atribui ao Estado o dever de especial proteção da família, e contrariaria, ainda, a racionalidade da resposta punitiva.
Ademais, essa mácula afeta, por arrastamento, a revogação do inciso III do caput do art. 122 da Lei nº 7.210, de 1984 - Lei de Execução Penal, visto que a participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social está contida no inciso I do caput do art. 3º do Projeto de Lei, o qual também versa sobre a visita à família, objeto da inconstitucionalidade vetada.”
Então a “saidinha” não vai acabar? DEPENDE!
Quando um projeto de lei é vetado pelo Presidente da República, ele é remetido novamente ao Congresso, possibilitando aos deputados e senadores REJEITAREM o veto presidencial, é a comumente chamada “derrubada do veto” (§ 4º do art. 66 da CF). Para derrubada do veto é exigido quórum de votação mais expressivo. É a denominada maioria absoluta, que se perfaz com mais da metade da totalidade dos membros de cada Casa. Com efeito, é necessário o voto favorável de 257 deputados e de 41 senadores.
E é nesse estágio que se encontra a matéria em tela. Em 12 de abril de 2024, o Senado recebeu a Mensagem do veto presidencial e a matéria está incluída na pauta para o dia 28 de maio de 2024, às 14h.
E se o Congresso rejeitar o veto, a matéria retorna para o Presidente? NÃO. Se os deputados e senadores rejeitarem o veto, a Lei será promulgada nos termos como foi anteriormente aprovada pelo Poder Legislativo.
Aí sim será o fim da “saidinha”? A princípio sim!
Digo “a princípio” porque, no âmbito político, realmente não caberá mais discussão sobre a matéria. Porém, ainda há a possibilidade de no futuro o Supremo Tribunal Federal – caso seja provocado – declarar a inconstitucionalidade da lei que pôs fim à Saída Temporária e ressuscitar o instituto.
O que temos de momento é que nos próximos dias, haverá uma resposta do Parlamento sobre sobre esse tema que se arrasta há anos nos escaninhos do Congresso e que gera tanta discussão no seio da sociedade. Aguardamos ansiosos!
Por hoje era isso. Minha respeitosa continência a todos e até a próxima.
Mário Luiz
Tenente-Coronel da PM, professor universitário e mestre em direito
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