Por Mário Luiz
Em 22/06/2024 às 09:51Algumas Polícias Militares do Brasil passaram a equipar seus agentes com câmeras corporais (bodycam). Estas são acopladas ao fardamento do policial militar e gravam as ocorrências policias. O escopo inicial de sua criação foi o de dar maior robustez à prova, pois, na medida em que a prisão é filmada, torna-se mais factível a reprodução do contexto fático em juízo, permitindo a reconstrução mais fidedigna da verdade real.
A intenção das corporações policiais militares foi louvável, visto que buscaram aprimorar a prestação do serviço de segurança pública e otimizar a persecução penal. Contudo, a prática forense revela que o propósito do projeto foi desvirtuado. Aquilo que era para facilitar a produção probatória em juízo tornou-se essencial para a validade da prova.
Em recentes decisões, os tribunais superiores passaram a entender que a prisão de um criminoso ou a apreensão de drogas/armas são nulas quando não filmadas. Nesse sentido, transcrevo o trecho do famigerado Habeas Corpus (STJ) nº 598.051:
1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.
4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo, e preservada tal prova enquanto durar o processo.
5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.
Fazendo um aparte: o Habeas Corpus nº 598.051 – juntamente com o Habeas Corpus nº 158.580 – (ambos de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz) são os julgados mais polêmicos da história do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em matéria processual penal e segurança pública.
A partir desse julgado, os tribunais e juízes, em larga medida (respeitando a força dos precedentes – art. 926 e 927 do CPC), passaram a adotar como critério de validade da prova o registro audiovisual da operação, ou seja, quando a ocorrência policial não é filmada pelas câmeras corporais, a prova da materialidade e autoria do crime é ILÍCITA, logo, NULA.
Prova ilícita = prova nula = prisão nula.
De maneira sucinta: se não houver a filmagem, não há como provar que o crime ocorreu.
Em termos “não jurídicos” – quiçá chulos – significa dizer que “a prisão não valeu”.
Não desconheço que a prova (em especial em matéria penal) deve ser produzida de acordo com os preceitos constitucionais e legais, sob pena de nulidade. Nossa Magna Carta de 1988 é peremptória nesse sentido: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI). E nosso Código de Processo Penal (CPP) diz que toda prova que seja produzida violando normas constitucionais ou legais será tida como ilícitas (art. 157) e, como consequência, não será levada em consideração (serão nulas) devendo ser desentranhada e destruída (art. 157, § 3º).
Trata-se de uma importantíssima garantia fundamental do cidadão a inadmissibilidade do uso de provas ilícitas no processo. O Estado, ao aplicar a lei penal a um infrator, deve observar de maneira inarredável a disciplina legal e constitucional de produção probatória. Consiste em uma limitação ao poder punitivo do Estado.
Uma interceptação telefônica exige ordem judicial (art. 5º, XII da CF); a entrada forçada em residência, apenas em casos de flagrante delito ou com ordem judicial e, neste último caso, apenas durante o dia (art. 5º, LXI CF); o réu deve ser informado do seu direito ao silêncio durante o seu interrogatório (art. 156 do CPP), etc. Qualquer prova produzida que desrespeite esses comandos imperativos será considerada ilícita e não poderá ser levado em consideração.
Exemplificando: policiais entram na residência de um sujeito e lá encontram uma tonelada de droga. Se a entrada na residência não observou algum preceito legal, o encontro da droga será tido como nulo, não terá validade jurídica. Como conseguinte, o proprietário do entorpecente não será responsabilizado pelo crime de tráfico de drogas. Ouso dizer que essa droga “existe no mundo dos fatos, mas não existe para mundo do direito”.
É meio paradoxal. Eu sei! Mas existe uma finalidade legítima, qual seja: os agentes do Estado devem observar fielmente a lei. Trata-se do valoroso princípio da legalidade, que rege toda administração pública e com ainda mais razão em questões envolvendo matéria penal.
Ocorre que, como transcrevi acima, o STJ passou a exigir que toda operação policial seja filmada, sob pena de nulidade da prova (HC 598.051). Ou seja, nos termos do julgado citado, se policiais entrarem em uma residência, em situação de flagrante delito (art. 5º, LXI da CF) e lá encontrarem uma tonelada de droga e prenderem o traficante por isso, porém a operação não foi filmada com as câmeras corporais, a entrada na residência é ilícita, bem como o encontro das drogas e, por conseguinte, a prisão será anulada.
Com o devido respeito, mas não existe NENHUMA norma, constitucional ou legal, que exija a FILMAGEM de uma operação policial COMO CONDIÇÃO DE VALIDADE DA PROVA.
Quando o STJ exige que a operação policial seja filmada, sob pena da prova obtida ser invalidada, está-se abrindo dois perigosos caminhos em um estado democrático de direito.
Primeiro: o Poder Judiciário legislando. Seria válido a exigência do registro audiovisual das operações policias? SIM. Desde que emanasse de LEI! Esta discutida, votada e aprovada pelos representantes eleitos pelo povo para inovarem o ordenamento jurídico, qual seja o PODER LEGISLATIVO.
Os Três Poderes de uma nação – Executivo, Legislativo e Judiciário – têm as suas atribuições estritamente estribadas no texto constitucional e exercem um mútuo controle dos seus limites. Qualquer subversão desses limites pode levar à ruína o constitucionalismo democrático.
Segundo: existe um princípio festejado no direito administrativo que é o da presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos. Presume-se que os atos praticados por funcionários públicos no exercício de suas funções estão de acordo com o ordenamento jurídico e seu conteúdo seja verdadeiro.
Essa presunção é relativa, logo pode ser afastada. Sendo que o ônus de provar a ilegalidade do ato recai sobre o particular. Não é a administração pública que tem que provar que seus atos são lícitos, mas sim o particular que tem que provar a ilicitude.
O sistema colapsaria se a administração pública tivesse que provar, em todos os seus atos administrativos, que os fez de forma legal. Teríamos que ter câmeras espalhadas em todas as repartições púbicas, todas as ligações, mensagens, conversas feitas por agentes públicos teriam que ser gravadas, entre outras medidas.
E é justamente isso que se está fazendo ao exigir a filmagem das ocorrências policias. Está se afastando o princípio da presunção da legalidade do ato administrativo praticado pelo policial, o qual só é tido como legal se puder ser provado através do registro audiovisual.
É um perigoso caminho que se está a trilhar, que subverte a ordem do direito administrativo.
Para finalizar, repiso que as corporações policiais militares implementaram o uso das câmeras policiais com o fim último e legítimo de aprimorar a produção probatória em juízo e garantir uma maior efetividade da prestação jurisdicional na aplicação da lei penal. Contudo, a exigência da filmagem como condição de validade da prova desvirtua o propósito inicial e traz consequências adversas à segurança pública e à administração da justiça.
Minha respeitosa continência a todos e até a próxima.
Mário Luiz
Tenente-Coronel da PM, professor universitário e mestre em direito
Instagram: @tcmarioluiz
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