Inspiração

Correndo com propósito: a história da corredora com deficiência visual que conduz a cadeira da inclusão

Sem enxergar desde os 16 anos, Ana Júlia não se limita para exercer a solidariedade

Por Lucas Renan Domingos -

Em 23/11/2023 às 15:27
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Foto: Lucas Renan Domingos/Portal Engeplus

Não é incomum flagrar uma cena de apoio e solidariedade em uma prova de corrida de rua. Experimente ficar às margens do trajeto onde estão outras pessoas observando a competição ou em um ponto onde os próprios corredores se cruzam. É certo que você, uma hora ou outra, vai escutar gritos de incentivos ou um gesto solidário para quem está ali, se desafiando a alcançar a linha de chegada.

A corrida de rua, com certeza, é um esporte democrático. Basta calçar um tênis, uma roupa confortável e ter dedicação para alcançar um mínimo preparo físico para começar a vencer as primeiras distâncias, sejam elas medidas em poucos metros ou em quilômetros. Basta não se limitar.

Foi o que fez Ana Júlia Maiate Vieira, de 19 anos. “Cada corrida que eu faço é uma conquista. Eu fico muito feliz em saber que eu consigo correr. A corrida de rua é inclusão”, enfatiza a estudante de Psicologia, lutadora de jiu-jitsu e, desde o dia 15 de outubro de 2023, uma corredora amadora.

Ela é PCD (pessoa com deficiência). Por conta da sua genética, nasceu com coloboma da íris e da retina, ocasionando uma má formação do globo ocular. Aos cinco anos, perdeu totalmente a visão do olho esquerdo. Aos 16 anos parou de enxergar também do olho direito.

É claro que perder 100% a visão exigiu de Ana Júlia adaptações, mas nunca impôs limitações. “A adaptação foi um pouquinho difícil, mas muito rápida”, conta Maria de Lourdes Rodrigues Maiate, mãe de Ana Júlia. “Ela sabe ler e escrever em braille. Conseguiu aprender em três meses. A Ana é independente, principalmente em casa. Ela toma banho, escova o cabelo, faz maquiagem, tudo sozinha. Para ir ao trabalho ela pega Uber. Vai para a faculdade de ônibus. A Ana não tem limitações. Ela faz tudo o que ela quer”, emenda.


Ana Júlia e a mãe Maria de Lourdes Rodrigues Maiate - Foto: Lucas Renan Domingos/Portal Engeplus

Esporte

A prática de esportes sempre fez parte da rotina de Ana Júlia. Já fez balé e treina jiu-jitsu. Recentemente veio o pedido para começar a participar de corridas de rua. As primeiras experiências foram sentadas em um dos triciclos do Projeto Pernas Solidárias de Içara, formado por corredores voluntários que, por meio de triciclos adaptados, conduzem pessoas com deficiência física ou intelectual. “Eu participava sentadinha na cadeira e senti que eu seria capaz de correr. Foi aí que me apresentaram a Fran e começamos a treinar”, lembra Ana Júlia.

Fran é o apelido de Franciele Luiz Domingos. Também corredora amadora, a engenheira química se apaixonou pelo esporte desde quando começou a praticar. Nas provas que participa, conheceu o Projeto Pernas Solidárias e notou que nas cadeiras também estavam pessoas que poderiam estarem fora do triciclo.

“Surgiu o desejo não só de eu empurrar os triciclos, mas de treinar alguém para correr. Eu tinha este desejo, principalmente ensinar uma pessoa com deficiência visual, porque meu avô era cego”, explica Franciele, neta de Orides Barbosa Domingos, que morreu em 2002 e perdeu a visão em 1975, em um acidente de trabalho na carbonífera onde trabalhava.

A preparação

Apresentada para Ana Júlia, começaram a preparação. Depois de Franciele pegar dicas com o grupo de corrida Sexto Sentido, de Porto Alegre, ação de inclusão social por meio da corrida guiada para pessoas com deficiência visual, elas se encontram todas as sextas-feiras em um dos parques da cidade de Criciúma para os treinamentos. A meta? Fazer Ana completar uma maratona, um total de 42 quilômetros, em um prazo de até cinco anos de preparo.

Desde quando começou os treinos, Ana percorreu três circuitos de corrida de rua. A primeira vez foi em 15 de outubro de 2023, na Corrida Farben 30 anos, correndo quatro quilômetros e tendo Franciele como sua guia. E logo na sua segunda prova quis fazer algo diferente e colocar em prática aquele gesto que é constante entre os corredores: a solidariedade.


Com a sua guia Franciele, Ana Júlia se prepara para correr uma maratona - Foto: Lucas Renan Domingos/Portal Engeplus

Lembra do Projeto Pernas Solidárias de Içara? Ela não só deixou de participar das provas fora do triciclo como quis retribuir a experiência que a ação lhe proporcionou com outras pessoas com deficiência. Ana Júlia passou de passageira a condutora da cadeira, colocando em prática aquela solidariedade costumeiramente vista nas corridas de rua.

“Fiquei dois anos sentada no triciclo para participar das corridas. Nas provas eu sentia como as crianças perto de mim ficavam felizes em disputar as competições. E eu queria fazer parte disso. Foi o que me motivou a começar a correr para conduzir a cadeira”, diz.

A primeira prova empurrando o triciclo aconteceu no dia 29 de outubro de 2023, durante a Corrida Abba Pai Solidária. Auxiliada por Franciele e de Julio Pedro da Silva Neto, fundador do Projeto Pelas Solidárias de Içara, Ana Júlia realizou o seu desejo não só de correr, mas de oportunizar outras pessoas com deficiência, assim como ela, a experiência de como é uma corrida de rua.

A corrida é emoção. Eu consigo correr e ao mesmo tempo realizar sonhos de outras pessoas. Durante o trajeto tenho uma conexão muito legal com quem está no triciclo. Nós rimos, brincamos, comemoramos

Ana Júlia, corredora amadora com deficiência visual
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Na imagem, a primeira vez de Ana Júlia conduzindo uma cadeira do Projeto Pernas Solidárias de Içara - Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

O gesto de empurrar o triciclo voltou a se repetir no dia 19 de novembro de 2023, na prova Corrida UniSatc 20 anos. Dessa vez, a companhia foi de Ednara Rosa, outra corredora amadora. Ana Júlia conduziu na cadeira sua xará que é portadora do Transtorno Aspectro Autista. Juntas, elas venceram mais quatro quilômetros de corrida por um percurso dentro do terreno da Satc. Elas tiveram ainda o apoio de Sabrina Ramos, Catia Dolzan da Silva e Rafael Ugioni Colombo.

O momento de conduzir as cadeiras não é exclusividade de Ana Júlia. Quem corre ao seu lado completa a prova com um sentimento especial. “Ana é portadora de deficiência visual e me constrangeu com seu jeito lindo de viver a vida. Corremos em um percurso desafiador, com alguns morrinhos e muitos buracos, claro que nos alegramos pulando nas poças e fazendo aquela festa. Conduzimos a Aninha, criança autista que se divertiu muito no trajeto radical”, descreve Ednara.

O Projeto Pernas Solidárias Içara

O Projeto Pernas Solidárias foi criada pelo comerciante catarinense Cleiton Luiz Tomazzia no ano de 2015, em Joinville. Mas a iniciativa já se espalhou por diferentes cidades do Brasil. O Projeto Pernas Solidárias de Içara é o único no Sul de Santa Catarina. Com o início das atividades em 2020, a ação conta com 20 triciclos e três handbikes, bicicletas adaptadas para serem pedaladas com as mãos por pessoas com deficiência física nas pernas. A iniciativa conta com mais de 20 condutores voluntários.

“Cada prova é uma história e um sentimento de gratidão diferente. No começo nós até ficávamos receosos se usar a cadeira nas provas realmente gerava algum benefício aos participantes. Ao longo do tempo fomos vendo que sim”, garante Catia Dolzan da Silva, mentora do Projeto Pernas Solidárias ao lado do seu marido Julio Pedro Da Silva Neto, fundador da ação.

“Tem um menino autista que sempre está com a gente e a mãe relatou que as professoras dele perguntaram se ele estava fazendo alguma nova atividade, porque ele estava evoluindo nos estímulos. Antes na escola ele não demonstrava carinho com as pessoas, mas sempre que ele chegava no Projeto Pernas Solidárias ele abraçava todo mundo. É muito gratificante ver isso”, diz Catia.

O caso de Ana Júlia também mostra os reflexos do projeto. “As histórias realmente comprovaram para a gente que o Pernas Solidárias gera benefícios para quem participa. A Ana Júlia tem uma força de vontade enorme. É um exemplo. Temos certeza que ela não vai querer para de ser condutora. O triciclo, na verdade, até auxilia ela, porque a Ana consegue sentir pela cadeira as deformidades do trajeto antes dela passar. E nós, que vamos ao lado dela, vamos contribuindo, descrevendo o que está acontecendo em volta. A Ana é uma superatleta, que é como nós chamamos quem vai sentado no triciclo. Agora ela está mostrando isso também fora da cadeira”, enaltece Catia.

A deficiência visual de Ana Júlia tem a possibilidade de um dia poder ser revertida. Estudos feitos na Austrália e Itália estão em fases experimentais. Ana Júlia e a mãe Maria de Lourdes estão na esperança de que o tratamento chegue ao Brasil nos próximos anos. Até lá, a estudante de Psicologia e corredora amadora vai dando exemplos de que não há limites para viver novas experiências e exercer a solidariedade.

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